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sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Autumnu

Desculpa-me por cometer o erro de ressurgir por entre a folhagem jazida na água, sem que o perfume de Outono fosse altivo, sublime e etéreo.

Aquele sentir impelido pelos enraizados sentidos num destino quase circular ao coração, advindo de um pulsar incerto, redundante, possesso de uma pele que nos fala de solidão.

Desculpo-me em devaneios a sós por julgar que me sei dar, ou pela circunstância de sempre me ter iludido e pensado que o fazia. A melhor hipótese seria cometer perjúrio e sem me importar demasiado pela indelével transformação frente ao espelho.

Consertado o desgosto, pouco antes do aperto no peito por te querer mais próxima de mim, dar-me à terra do nunca sem que a boca se cale pela distante fome dos teus olhos.

E digo sem que as vezes sejam repetidas, sem que os braços desmedidos e nem a dor uma droga necessária, gosta-se da dor mesmo que alheia à realidade. Fascinante mal estar, sorvendo amarguras ao sabor esperançoso de outros esquecimentos.

Para um provável equilíbrio de massas e fontes, descura-se a bondade combatendo a inércia da bonança. Um pouco menos humana, a paixão transcrita entre momentos de euforia e vazios deitados no mármore escuro, entre a ribalta e o declínio oblíquo ao céu estrelado.

É assim, qualquer coisa de bom. Proveniente de outros sabores que ousa a minha língua saber sem descurar ou perder-se em desmedidos adjectivos. Uma palavra que me soubesse mudar o sentido da frase, numa desajustada caução da alma às práticas mundanas. Perder-me-ia noutra voz sem que me viesse de dentro. Com outro fundo de voz, um sussurro em timbre de paladar raro, metálico e frio.

Deixa-me um bilhete à porta que nunca abri, daquela que nunca cheguei a sair. De lá para cá. De qualquer lado sem ser este algum, dizia-me...

"E no desgosto do gosto que longe se fez no alcance da força dos teus dedos, deixo um sonho que o pesadelo da tua ausência me trouxe quando a pronúncia altiva do dia disse à noite que se fosse.

À luz do dia esbranquicei-me numa anemia de emoções, e quase transparente aprendi que a dor é a soma de tudo quanto ofuscou e me ardeu nos olhos que à morte da tua presença no meu corpo se apagou.

Foram lágrimas, como sal que tempera o tempo dos anos que cada hora sem ti faz passar por mim. Destempera a fragilidade do vidro do copo de vinho meio cheio que cada vez me enche mais de vazios.

Apanha-me, finta-me, rouba-me do desespero da palavra que tarda em chegar à curva dos meus lábios, mas silencia. Não digas. Cala-te, guarda-me no segredo da ratoeira que hás-de inventar para me desprevenir desta dor que interiorizo. Faz-me caça do teu desprezo, não serei a pressa em pretérito imperfeito da presa vulnerável e assustada para te escapar... e deste novelo de novelas sem final feliz desenleio uma estória inacabada de paixão.”

Talvez no erro de me já saber nestas linhas, guardo o rascunho de alguém que chorou à beira rio. Palavras vãs de um teatro que crepita na solidão da esperançosa proeza da espera. Tornam-se minhas, por enquanto, e mais as outras tantas palavras e sentidos que nem sei escrever. E olhando para o que fica, nada fiz, nada sinto e pouco faço.

Esta cidade empurra-nos para o limite do horizonte, lança-nos borda fora. Sem um aceno, as ondas vão e voltam... vão e voltam... vão e voltam e pouco trazem para além do suave embate no molhe.
A música triste que se orgulha em tomar almas por este passeio, entre a surdez dos aflitos e apressados, escamoteando-se por entre o cinzento geral. Guardam-se tantas esperanças no lodo a um palmo de mim, de ti, de todos.
São trezentos e sessenta e cinco dias por extenso em que a consciência tanto se inibe de proliferar por todas as bocas da mortal paixão. E fechados estamos, guardados a nada, esquecidos que o céu está sempre sobre as nossas cabeças.

Desmultiplico-me por desculpas em revolver o lodo a um palmo do meu rosto, por entre as folhas jazidas, sem sentir que morro mas sem saber que vivo. Desmembrando os alicerces das camadas de tempo, a nostálgica volta da estação da prata ao final dos dias, da nudez forçada das árvores que me agarram a atenção. A tosse convulsa das chaminés enquadra-se com o frio instalado no rosto e mãos.

Dou-me ao soluço de um trago, este malévolo unguento de me saber agridoce. Enrolo um cigarro numa mortalha demasiado curta, sem cola. Fumo-me na incapacidade de me saber melhor que isto. Desculpa-me por nada, ou então, por tudo.

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Rosé

Chamar-lhe-ia globalização de males comuns, se não fosse esta paixão cega que nem classificar sou capaz. Sendo apto, ou pelo menos, apontar-lhe um foco de luz para que não se pareça tão mortiça como o próprio autor, uma constante transparência sem um mal entendido entre uma afirmação e outra. Que seja suspeito de crimes maiores de me obrigar a passear pelas ruas na primeira noite de chuva, sapateando silenciosamente, e talvez seja apenas à mente que minto num tanto de sabor a saudade.
É uma contrariedade de perfume brando, mãos suaves e corpo pendido no lábio que insinua beicinho. Apetece-me um doce, com chocolate que não se tenha de mastigar, esperar por um punhado de tempo até que me apresentem a conta. No final até fumo numa pequena saída à rua, já que o hábito agora é fazê-lo lá fora.

- Não, não não… não… - Disse eu enquanto a minha cabeça acenava e um contentamento apoderava-se das minhas pernas. E pronto, já que aqui estou, bebo mais alguma coisa, e hoje que me sinto com tanta secura até me fará encalhar em qualquer pedrinha no caminho de volta, se algo do género ainda existir no fim da noite.

Nem assim aguentei mais que duas horas. Fartei-me, azedei pelo que ingeri, queimei por me ter esquecido. Pisei sem querer matar devagar esta fraqueza pelas luzes frias do café. Nem mesmo a salvaguarda de viver entre três pares de mamas se coaduna com esta fraqueza a que muitos chamam de forma leviana de encarar os factos. Apenas pensava que a vida se subjugava a outros valores menos resplandecentes, e que talvez o preço de cada garrafa fosse o maior dos exageros a que estes mortais se atrevessem.

Enganado estava eu e nem grande mal via nisso. Tão enganado que já andava, tão pouco mais enganado agora, sem nunca me ter dado para acordar na cama errada, apenas deitar-me... apenas deitar-me.

Acordar envolto naqueles hálitos partilhados, no engelho dos corpos transpirados de demasias e excessos. O infernal buraco no estômago de quem não ingere nada há milhares e milhares de anos. Nada tem de errado acordar do avesso, com mais seis pernas e outras tantas mãos. São leves, macias, pequenas travessuras enroscadas como gatinhas. Como gosto deste lastro a batom que me impregna a boca tão beijada e calada na surdez e cegueira da noite.

E dizia-me eu enganado como um saloio caído na confusão da cidade. Oh, como a doçura da travessura me faz entender tanta coisa. Encolho os ombros, reconforto o pescoço do frio da manhã e desapareço por entre uma rua.

Poderia chamar-lhe uma confissão de optimista sem pretensões a grandes actos heróicos. Entregue ao desplante de me conservar entre mulheres rígidas e frias, vendia-me à evidência de três garrafas importadas, duas conspirações de balcão, injúrias já em tom baixinho por entre os sobretudos que se vestem antes de sair pela porta dos fundos.

- Não, não, não e não – Dizia-me a boca que apenas desejava o contrário, morrer entre aqueles seios firmes e perfumados. Já que se é mortal, que seja ao menos escolhido o leito, embebido na colónia importada e oferecida por outros, beijando-me opiácios lábios degustados a tanto, mas tanto prazer sem fundo.

O sorriso surge com a mistura alcoolizante dentro do corpo. O latim gasta-se-me com facilidade nas veladas tertúlias de levar para a cama em festas de protocolo. No fim, pedem-me que lhes dê por trás para que os oficiais não desconfiem dos castos valores intocáveis. Atributos semi-religiosos confinados a supostas clausuras e esperas. A soberba promíscua, as sumptuosas preciosidades, sedas e gemas acabam à porta da quinta divisão virada para nascente, mesmo por cima do piano que jaz na sala. A rudeza da sua carência satisfeita, desaparece por entre o angustiante jogo de luz e sombras. É uma imagem que só se me dilui por entre o odor do cachimbo e a pesada névoa de um passeio sem sentido.

Estala-me a vontade de cair de novo numa cama sem redoma, de enxutas carnes, frágeis respirares sem nunca a tosse parecer-me a um escarro de vinho francês. Talvez porque saiba que de manhã, aquelas pepitas rosadas, espetadas na exuberante forma que a Natureza as fez, de as apertar com o vigor sensato de alguém tão comedido quanto eu. Enrolar-me e estender-me pelos cabelos, sentir quente e frio nos seus corpos baratos quando este desejo me sai tão caro da pele. Cada mão macia que me mexe, cada voz que me trespassa este coração tão mole, vale cada centavo deste tão vulgar declínio dos tempos modernos.

Enfim, hoje como é Domingo decido-me a passear pelo parque. Ser-se visto, comentado e invejado é um pressuposto de mais valia, um certificado de vida. Eu que nem me comovo demasiado com os azares, toca-me imenso aquelas almas que nem sabem ao que sabe um chocolate derretido numa boca que fazemos nossa. A felicidade compra-se, a solidão adquirida.

sexta-feira, 31 de outubro de 2008

P Station 6 am

Procuro mulher desinteressada, usada, comida e cuspida por outros. Desejo mulher amarrotada, cheia de culpas e fugas. Quero-a para nenhum fim em especial, com barreiras intransponíveis, escarpada e perigosa. Sem falsidade, que me engane uma vez por outra com pequenas coisas, golpeando-me na fraqueza de a amar. Atractiva, errante, que se embebede e fume, que foda, que me foda, que se foda mais as suas manias.
Procuro mulher irritante, irritável, irritada, irada com a minha desarrumação. Pretendo-a esquecida, que me perdoe e depois se vingue. É de minha intenção que me bata e depois bater-lhe. Solicitá-la para serões, discussões, amuos e loiça partida. Quero-a por trás, no carro, nas escadas, na cama dos pais.
Exijo uma mulher que o seja. Vê-la gemer, sentir, degustar, amargar-me por ter dito uma frase mal pensada. Interpretá-la mal, ser mal compreendido, discutir enquanto o semáforo está vermelho.
Aspiro a uma mulher engelhada no coração, com nódoas, com maus costumes e péssima cozinheira, sem nunca admitir os seus pontos negros. Sendo ela notável na malvadez, arrancar-me todos os botões das camisas. Que me crave as unhas no peito, nas costas, na cara, tenho intenções de a deixar mordida, amassada, dorida.
Não quero a facilidade e a alegria do doce lar. Sem paciência para demências e psicóticas pancadas. Procuro a emotiva, motivada, mutável, que me transporte para fora daqui, cuidando de mim apenas da maneira que saiba.
Desejo encontrar uma mulher que me proporcione um universo, ao contrário, inverso ao que normalmente um homem quer. Terrivelmente feminina, possessiva, agreste, que me corroa de paixão. Quero-a para lutas, travar batalhas, ideais, adversidades e que me mostre a cidade.
Única, medíocre noutros espaços, que me ajude e me chague a cabeça quando sou eu a falhar. Instigadora nata, cuspirmos pela janela e rirmos numa patetice aguda. Espero chamar-lhe cabra, que se excite por saber que é a minha puta. Quero-a em mim, toda. Sempre. Para mim. Por mim.
Incontornável, de curvas perigosas, exaustiva, inteira, que me deixe no escuro da sua mente. Sonho-a incondicional, esforçada, cauterizante, que me saiba a fel, a vinho e a orgasmo. Sonho-a frustrada, ultrapassada, que me ganhe a subir escadas.
Procuro diva, vedeta, que seja uma vendida pela minha língua no seu corpo. Uma estrela, decadente, persistente, implacável. Mesmo que cante mal, que consiga provocar derrocadas no meu mundo. Destruir-me e ser destrutível, desmontável, dedutível, insaciável. Quero-a com fome, desgraçada, empeçada, complexada, com muitos defeitos e piores feitios.
Procuro miúda de joelhos esfolados, sem se importar com a erva que pica ou a terra no cabelo. Não pretendo que me peça desculpa de cada vez que me morda com mais vigor. Não espero que se lembre do meu aniversário e pense em festinhas ou em jantares no dia de S. Valentim. Em benefício de um serão alcoólizado, que seja capaz de me acompanhar em duas garrafas de vinho por dentro, mais outra garrafa por fora, num voto de silêncio, partilhando os medos, monstros e fungos.
Pretendo uma mulher que tenha tantos males como os meus, piores até. Que não distinga as minhas acções como peças de catálogo, distinguindo em cada uma os pormenores observados. Esperá-la à porta, guardá-la num cofre. Que me esconda das amigas, porque confia menos nelas que em mim. Quero-a irritada, excitada, desenvolta, absoluta, viciada em mim.
Enfim, sucedendo ao tempo de espera, sem chegar a outro tipo de conclusão que não este. E é ter sempre uma razão para voltar para trás, porque todo o bem que possa ter, é quase que adquirido. O mal não. Quando se quer bem, por vezes, faz-se mal.
Desejo-a inconsolada com a sua pessoa, desapontada com as linhas da vida, inconformada com o resto do mundo. Terrorista, massagista, vaca sagrada, mulher policia, malabarista do meu coração. Quero-a na corda, cruzada, injectada em mim, fumá-la enrolada no papel da minha pele. Quero-a por mim, em todo o seu mal, sendo minha.

terça-feira, 16 de setembro de 2008

N'o lugar do morto

Tudo melhora agora já por fora das sombras, longe de sentir o escuro nos olhos, nos lábios, no respirar. Sendo já parte de um Ontem, ainda que cercano, é um Ontem que passou. Melhora quando penso no pior, quando sangrava sem mais outros "quandos" em que pensar.

Lembro-me de pensar sim, e tudo me parecia tão certo no momento, tão lívido e clarividente. O sangue teimando em não estancar, sentindo gotejar-me por entre as fissuras estendidas de forma aleatória pelo corpo. Tão vulgar que parecia ser tudo comparado ao cheiro intenso da lama no meu rosto.

E pensava eu em coisas tão comuns e perdidas, e para mim ali no silêncio dos mortos, era tudo o que me agarrava à vida. Ali, enquanto me esvaía num nada intemporal, porque para mim já nem tempo existia, e nada me parecia mais importante que um café sem açúcar e um cigarro.

Ali, enquanto sentia um espesso volume contorcido a dilacerar-me algures, desejei num tremendo querer por um pouco de Sol de Inverno. Naquela palidez de cor quase prata, em que 17º centígrados conseguem acalentar sorrisos por entre o frio cortante. Ali estava eu naqueles preparos, atirado para a berma de uma forma não literal, preocupava-me com a mensalidade da internet por pagar, por não ter enviado os dois batalhões de soldados atacar a aldeia inimiga, por ter comprado um volume de tabaco em Espanha e agora estar aqui como uma pedra na lama.

O gosto ferroso e exótico do sangue, coagulando-me a lembrança do próprio nome, laços e pessoas. Ali, preso a uma sucata de nada, limitava-me à desconcertante situação de ter um buraco na peúga direita ao nível do tornozelo. Comprei-a já assim e não voltei para reclamar. Ali, jurei nunca mais lá voltar.

E gotejava, molhava-me com a vida que latejava de dentro para fora, numa eufórica corrente por fora de mim. Ali, na febre que me dava por me sentir preso, cuspindo para não me engasgar, finalmente soube na pele qual era a sensação de me sentir do avesso. As tripas na boca, o fel no coração, os olhos no chão, os pés nem sabia deles, já não sabia de nada. Ali, na intermitência de cerrar e abrir os olhos pela fadiga, nem sabia se o medo algum dia tivesse passado por mim ou até mesmo todo o seu significado e tudo o que se encerra em si. Calcinava-me sim, não ter hora para voltar a encostar a cabeça na minha almofada, de passar horas a fio a esquecer-me do corpo.

Tanta coisa importante me passou, e insatisfeito por tudo, chateava-me sentir as pernas presas e húmidas dos sulcos abertos na carne. Parecia-me tudo uma tremenda chatice, quando lá fora era tudo tão mais agradável. Se ao menos soubesse onde estavam os meus cigarros, mesmo de cabeça para baixo inalaria toda aquela pequena poção de veneno.

De facto, sentia-me morrer aos poucos, como quem desce por uma escadaria rolante sem dar por conta que tudo acaba lá em baixo. A verdade é que morria um pouco mais depressa que o costume. Ali, mesmo definhando entre convulsões e tremores, praguejava contra os que diziam ter visto a luz, o túnel, a leveza de deixar a carcaça, toda a vida correr-lhes pelos olhos moribundos. Ali, de cabeça para baixo, fracturado em várias realidades disseminadas pelo corpo, sentindo o único decilitro de sangue a querer sair-me por qualquer lado para se aliar à lama, aquecia-me a única palavra à altura de tamanha conspiração; merda. Uma verdadeira merda. Merda para o túnel e para a merda da leveza. Merda para os "flahsbacks". A única coisa que me passava pelos olhos e semelhante ao flash era um pisca pendurado pelos fios, iluminando aquela desgraça. Merda que nem fumar podia.

Ali foi assim, a revolta para o nada em que me sentia, tão pouco fui ali que até uma brisa seria capaz de me apagar. Tão insuficiente até para olhar em redor, tão pouquinho para penar-me em outros lamentos. Concentrava-me na fixação pelo cigarrinho, sendo a última coisa que me faltava.

Agora e aqui, por enquanto ainda me dói um pouco quando fumo. Vou lá devagar, com o tempo que acertou contas comigo. Quando o resto são mazelas e marcas de algo que agora se trata como um "quase" nada, um "quando" marcado na pele e na alma, por um pequeno desvio que se fez por um apeadeiro mais assombrado. Ali, fui apenas um necessitado de nicotina.

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

Transitário


O dia começava de forma lenta, e pela cadência do semáforo, não havia grandes motivos para me sentir melhor. De uma pausa demorada e repleta em morte angustiante de sono, pensava apenas em como seria bom chegar dez minutos antes do mesmo tempo que tinha feito ontem.

Arrasto-me pelo asfalto entre as cinco faixas entupidas, hipertensas e desesperadamente eternas. A vida caótica do comum que se torna cada qual dentro do seu mundo de lata, sobre rodas, no habitáculo climatizado em sintonia com o cinzentismo da paisagem.

Vou, arranco, acelero um pouco, embraiando o silêncio, o pensamento, a vida refém de mim. O tempo esgota-se, o sol sufoca e o aperto do cerco no cruzamento condensa monóxidos, suores e desesperos. E nada mais me resta, e pouco importa, nada mais que chegar cinco minutos antes de ontem, arranjar um lugar e fugir para o escritório.

Como me reencontro com quem julgava ser, sem ter de esperar a mesma eternidade que separa a Céu do Inferno. Convenço-me que o grito não passará para o exterior do habitáculo de vidros escurecidos e cercados por um friso de plástico cromado.

Bem fundo, com custos adicionais à minha saúde, corpo lato, mente flata, dormente de qualquer sentido que me tire desta demência que aceitei desde o primeiro dia.

Cerca-me uma vontade de me atravessar na fila, barrar o caminho já de si barrado. Criar um enclave simplesmente por querer. Morder os lábios e quebrar ar rotina, num assalto de memórias leves de um êxodo das próprias vontades. Tudo torna-se num único momento em que eu escolhi e tomei a decisão, justificando-me apenas com um "porque sim, porque quero, porque posso".

E aqui entre alcatrão, plástico e metal, tudo se desvanece em segundos, como aguarela desmaiando na sarjeta sedenta de cor. E por ter reagido três segundos mais tarde ao semáforo, ainda fico sujeito a buzinas, mãos no ar e umas quantas considerações menos amigáveis.

Embraio, acelero, travo, embraio, ponto morto. Morto estou e nem sabia, com o sol mesmo do meu lado, com a vontade a viver fora de mim. Falando num plural que apenas faz parte de mim, sem lugar para os outros, sem entrar pelo ambiente condicionado e climatizado. Sem o odor do plástico coreano, ou fragrâncias como post-it no retrovisor. Todos seguimos pelo mesmo caminho e nada nos liga.




image by LampadaMervelha

sexta-feira, 4 de julho de 2008

|M|ãe D'aqui

Olhando para o que ficou de comum entre as nossas vidas, pensava-me de forma imutável após qualquer transgressão. As ofensas não me trairiam nas marcas que deixavam, ao invés da consciência, incapaz de me ajudar, ficava-se pela janela acenando-me enquanto me deixava partir para mais um desgosto.

Sitiado pelo agreste olhar de quem morre à sede no deserto de um abraço, pedia-me a sua boca um sorriso da minha. Talvez fosse mais fácil desviar a atenção para um outro ponto de fuga, para mais longe da possível visão. Sem querer reconhecer que tenho tanto dela a percorrer-me no sangue, sabendo estar ao alcance de qualquer veneno. Saberia a sintonia entregar-se à minha vontade. Nada importa quando a estupidez ultrapassa a razão. Tão somente uma ou outra metáfora que me sirva de incentivo para a noite.

Sem tirar os olhos de mim, movimentava todo o seu corpo pelo quente e árido ambiente. Cheira a secura, ar quente que me consome por dentro, é bom demais de sentir. O odor da erva na terra enxuta de saudade, chama no olhar que acalenta esta fogueira perdida entre campos de amores desfeitos. O meu verdadeiro interesse estava centrado além mais do gesto provocador de humedecer os lábios com a língua. Apetecia-me matá-la. Não de uma forma qualquer, matá-la com aquele sorriso de menina, sufocá-la entre beijos, injectar-lhe a minha seiva, todo o meu mal dentro de si.

Talvez devesse percorrer a minha pele com unguento de má fama, uma certa forma odorífera que me provocasse a transpiração do mal. Por vezes tanta doçura assusta-me, e sem ter a certeza da pessoa que carrego entre braços, um arregaçar de mãos para o mergulho no escuro, de cabeça à espreita de um final comum. Diariamente encostar a cabeça ao ombro, cansar-me de repetidamente dizer que está uma tarde infinita.

A memória consumida à ténue luz dos seus olhos, os pergaminhos descolados da retina que se fez eterna. Manto silenciado, causa o transtorno pequenas fugas de expressão. Expectante sombra pairando sobre nós, e tão bem que aqui ficamos, sem ir nem voltar. Vela a surdez a morte da voz, antecipando qualquer pronúncia ou articulação do sucedido. Inveja a escuridão toda a luz sem saber que a translúcida desdenha a sua fina silhueta de cetim nocturno. Nem mesmo o vento, ao qual segredei uma confessa vontade, tem o querer suficiente de existir sem que se compadeça pelas tardes cálidas, imensas de acalmia.

Sedimentam as mãos no meu rosto esquecido, no tempo que urge bater à porta, chamando-me para a rua. Para lá do instante, da margem com pé, da relva aparada, os seus avanços acompanhados do ondulante sentir, a terra vermelha nos pés descalços, todo o sorriso que nasce em cada um de nós. Ofereço um cigarro à pausa repetida vezes sem conta, sem nadas, nem suposições ou esclarecimentos. Nada se pede, nada se apaga, tudo se esquece quando dobramos naquela esquina que tanto já viu e amparou na sua vida.

Jazem ali poetas por entre castelos de areia. Homens na sua ligação à vida, à corrente do pensar em sentimento que perdurará enquanto houver memórias. Vivem agora crianças que no mais importante das suas vidas, é escavar um fosso maior para desmotivar o inimigo imaginário. Assim as guardámos dentro de nós, as mesmas crianças que ainda somos, escavando mais, mais fundo que julgamos ver da superfície. E para nada. A maré chega e todo o areal retoma o seu rosto dourado ao sol, a tempo de reescrevermos todo o final, e sim, recomeçando do princípio uma vez mais.

quinta-feira, 12 de junho de 2008

|M|aria |A|mélia

Maria Amélia fazia-se à rua com a mesma forma pesada de quem arrasta grilhões de um coração na boca. Abria o pálido rosto à luz do dia por entre a franja imprecisa e descaída. Era o choque diário de um coração cauterizado por imundas mãos, hoje alheias à violência da incessante lembrança. Nem todo o mundo lhe bastaria para a fazer querer voltar a este.

Cala-se, redobra os votos de silêncio já de si morto, pútrido sabor de um círculo trágico, triste e funesto. Afasta os espíritos de qualquer boa memória no habituado cerrar de olhos, fincando os dentes em toda a extensão dos seus lábios, até que a dor se torne insuportável.

Maria Amélia entregara-se à emotiva e incondicional divindade da outra margem do sonho. Os braços abertos na saudade que desconhece o destinado. A sua espera lacrimejada, petrificado caule de um soluço rebento, sem que exista uma vã oportunidade de rasgar todo um passado. Junto à berma da estrada, caminha Maria Amélia, sozinha.

Sua odiosa criatura de mãos frágeis e fracas, num corpo débil e amante da derrota. Servil boca da vergonha, dos medos frente ao espelho. Olhos que mais enganam, enxergam eles a cegueira enraizada tão dentro de si. Que verdade, se a mentira é o alimento da loucura.

Maria Amélia não respira. Morta nas palavras que não se trocam, fria para o calor da partilha, exaurida de um único gesto que revele um sorriso. Acorda Maria Amélia, acorda ela com o sangue coagulado à volta do coração, na sua roupa engelhada e fria de vida. Cheira ao bafio do nojo, à repulsa de mais se querer entre os próprios ossos.

Eterna noiva que espera pelo amor defunto. Espinhando todo o caminho, cravando-se nas mesmas rosas feitas da sua carne. Murmura a vontade de não querer ser mais que um lasso trejeito, deambulante dissabor de uma vida já de si perdida à nascença. Compunha-se num género indescritível de desvelo, ténue lembrança de destroços deixados ao abandono da entrega ao nada que vive em si.

Maria Amélia escondia os olhos, cegava a cura, escondia o nome da sua doença, conspirava em morte contra a solução. Escorrega na calçada com a fraqueza alimentada pelas suas mãos. Tropeça nos pés de quem passa, empecilha, apagada, estropiada sentimental, caída entre peões. Ardem-lhe as pequenas pedras e impurezas nas feridas das mãos esfoladas.

Imprudente, descuidada, és tu Maria Amélia o nome que te inventei. És tu a desconexa, inconveniente e irreflexiva mutante que tanta vez assumi na minha vida. Grito-te Maria Amélia que na fúria foste parida, jurada à escrita de fel, na tua pele branca e lábios carmim.

Solto-te o cabelo Maria Amélia e tornas-te de novo Mulher.

quinta-feira, 29 de maio de 2008

|A| po|ss|ibilidade


Reduz-se ao papel o estalo de uma violência calada, usada, ousada em permitir que a fúria das palavras me levem para mais além.

Nada que me escorra se ecoa por mais agreste paisagem em que nada me compensa o grito vazio de ti. Sem nada que me apague da memória, na mesma que nem se lembra a história de a fazer mais alegre.

Serias tu, menina que chora, na sombra de um ombro que petrifica no olhar mais distante que os teus soluços. Sai-me assim, como o lenço de linho do bolso, aos poucos manchado pelas lágrimas que redobram ao compasso dos sinos.

Dizes-me, na tua lívida expressão procurando uma redenção.

- Vou-me embora, por agora que nada tenho para te dizer. Que a fome não te doa até que volte com as nuvens.

E respondo-te num gesto de recuo, enjeitado e escondendo a mão que te acena no adeus.

- Não vás...

- Porque o dizes assim?

- Porque sem que o tenha de dizer de outro modo, fazer-te mais, maior em beijo ardente, complacente do teu sorriso. Seria amar-te em cada respirar de vida oferecida, por cada dia que eu viva.

- Não posso. Não podes. Não podemos.

E partes como os outros que se foram esquecendo e ficando esquecidos. Deixando-me partido, aparte, quebrado no bramido mansinho de quem morre esvaído de algo que não se vê. Não posso, não podes, não queremos. Antes o luto que a luta.

Poderia um sentido ajudar-me nesta angústia. A letra tingida, segura na amargura da tinta, veneno desta soltura que me lembra os teus cabelos.

Ao ponto de fuga no retorno de um dia... um dia talvez quebre a jura de mim.

Um dia.

imagem: http://lampadamervelha.photoblog.com


segunda-feira, 19 de maio de 2008

|c|ru

Queria a veia carnuda e cheia de tanto me sentir nas tuas mãos, fazeres-me gemer ao ouvido da tua teia maliciosa. Treme, teme por quem nada mais tem a dizer nos silêncios entre palavras, despojos, lembranças que se revelam segredos. Saber-me-ás clamar em noites que não esteja aqui.

Que tens tu guardado nessa mão tão fechada, cerrada a pulso firme do tamanho da afirmação em que me tentas forçar o murro. Violenta passagem pelo filamento incandescente da suposta razão, sustenta-me em mais um sonho de fio negro tecido entre as nossas bocas.

Por dentro de nós, o que és para além de quem sou, a mais sobeja do desconhecido mundo obscuro. Beija-me, beija-me com toda a paixão que possas inventar. Beija-me agora que o mal não se me pega à pesada forma de pensar.

É tarde, mas nem por isso julgo que o tempo tenha passado em excesso, pela demasia em me julgar lesto e quebrado no feitiço. E porque razão penso tanto em ti, continuando a inventar-te nas frases, mesmo quando estás ali apenas a um compasso do coração. Ali estás, no mesmo tempo que é meu, e mesmo assim, tudo é tão diferente de olhos fechados.

Sinto-me sim, esgotado de tentar interpretar as próprias palavras do meu coração. Necessitaria de mais palavras para ditar um pacto que me desse a satisfação necessária a uma sensação, invariavelmente nunca conquistada, de me sentir saciado. Encanto-me pelo desconhecido, o irreconhecível que acorda todos os dias assim, bem entranhado em mim.

Queria a tua veia absoluta e cheia de tanto me olhar pelas tuas carícias, fazeres-me calar à boca da tua voz matinal. Diz-me, pinta-me nas mesmas cores em que os dias se fazem ao amanhecer, apenas nos sons que colam silêncios. Segreda-me o teu sorriso, lembra-me de te lembrar. Saberá a ausência clamar-nos de noite, sem estarmos, sem sermos, sem nada que nos toque.

Não respires, não ouses afastar, não me queimes à tua luz, não negues, não me digas nada mais que nada. Contraria, continua, assim como o barco balança na ondulante sensação de um gesto mudo, surdo para te ouvir de novo. Contrasta-me esta vontade de tanto querer-te que nada mais se me aparenta vivo.

Nem que me repita toda a noite, o tamanho ímpeto insiste na cumplicidade das veias ao aleatório ponto final. É curto. Tudo é tão pouco, o que possa dizer. Cru, sou eu.

terça-feira, 22 de abril de 2008

|F|umando nas |E|scadas

Pede o tempo que fique sentado nos degraus à porta, espreitando o dia que me morre para lá da floresta. O odor silvestre faz-se sentir, misturando-se no térreo vislumbre de quem se espera e chega.
Por entre os similares hábitos da espera, cai de mansinho aquela névoa que humedece todos os recantos.
Está frio.
Por vezes saio para a rua quando o escuro toma o lugar do dia, apenas para contemplar as sombras disformes por entre a trémula luz da lareira.
Aqui os serões não são mais que um desfiar de tempo, não são menos que vida serena.
A noite fala, o dia consente.
E sabe-se lá a razão porque escrevi. Saiu-me. Chamar-lhe-ia uma breve memória por entre outros corpos que já dormem. Não o faço porque estou ao relento, ainda olhando lá para dentro, por agora.
Ainda que lesta e fria, a noite torna-se um pouco mais amiga e convidativa no decorrer dos dias. Descongelam vontades, relembramos sonhos já quase abandonados. Ocorre-me com alguma frequência ter assaltos de momentos agradáveis e que, sempre que viajo até lá, trazem a luz, o odor, a pele da altura. Como me poderei esquecer do amargo sabor dos bancos de napa? Como poderei esquecer o sabor de uma língua com vodka barata? O cheiro do areal numa madrugada. O sofrimento em sede e fome até ao primeiro beijo consumado. O estojo com as doze canetas de feltro. O primeiro engate a sós na discoteca. Os primeiros momentos, os outros repetidos, os últimos acenos, as despedidas com sorrisos num “até breve” mesmo sabendo que seria para sempre. Alguém mais se lembra daquela miúda que me perguntou o nome, beijou-me, sorriu e depois desapareceu por entre a multidão? E como sabe bem que assim perdure, desaparecendo por entre aquele mar de gente.
Chamar-lhe-ia uma breve memória por entre a repetição das mesmas. O corpo cansa-se, a memória atraiçoa, faz-me parecer demasiado volátil. São vinte e nove anos e tenho tanta sede como no primeiro dia que tive a consciência que viver é algo assim tão estranho, curioso e fascinante, assim como quando se prova vinho à terceira vez. Ainda só comecei ontem, e a noção que tenho é que isto vai ser rápido, muito rápido. Assusta-me poder adormecer pelo caminho, deixar de ter a minha noção de mortalidade. Curioso, acontece-me o mesmo ao fim de uma garrafa de vinho.
Pede o tempo que fique mais um pouco aqui sentado nos degraus. Eu fico, porque quero ficar.
Quem chegou, trouxe nas mãos amoras de uma acidez que desperta os sentidos. Salivo, sei lá, salivo pelo beijo que me dá, pelas sensações que desplotam em mim. Não serei o ideal de bom rapaz, mas estas coisas estimulam-me, e sim, fico excitado só de imaginar que se excita por saber que lembrar-me-ei do seu cheiro, dos seus dedos por mim, do modo eterno que me for permitido.
Gosto de escadas, de esperar alguém numa escadaria ou de nada fazer nelas. Apenas ser alguém sentado num degrau. E guardo quem sou em escadas que já construí como império. Por entre os similares hábitos da espera, o engenho de me reescrever à mesma luz, nos traços da cor predominante do meu sentir. Morre-me a boca na última palavra vociferada e transtornada, dita a um beco mudo, pensava eu que fosse mulher. Pensava eu ser melhor agora, ao contrário, pareço-me e fico pela intenção.
Nunca tive o hábito de beber sozinho, apesar de nunca me ter habituado a beber apenas um copo. Nunca fui comedido na paixão, também nunca cheguei a desintoxicar-me por completo da loucura de sentir o coração explodir. Talvez aprenda a falar numa linguagem mais próxima dos outros, um pouco mais à mão do coração. Ficar mais perto das mãos que me querem, destes gostos únicos e transmissíveis, num beijo trocado com sabor a noite de Primavera.
Clamamos por lágrimas, choramos pelas chagas dos outros, pelas nossas, nas nossas, das nossas. Emprestadas, proclamadas como sentenças, criam-se vazios por entre os dias, talhões de nada que apenas nos ocupam espaço. Tendo o dia dois momentos tão diferentes, sentenciamos as memórias e passamos o resto do dia a esquecer o mesmo. À noite, apaguem as luzes o mais depressa que puderem, durmam e esqueçam. Caso sonhem, não se esforcem na tentativa de relembrar o que foi. Cuidado, não partam a cabeça em falsas lições empíricas. Leiam alguns autores consagrados mas não ousem na aventura de viver um pouco para além da sombra.
Encolho os ombros, dou por mim a pensar alto, aqui, sentado à porta de uma casa que nem sei de quem é. Os corpos continuam no descanso, entre as sombras disformes e a luz trémula de uma lareira que já pede por mais lenha.
Vou só ficar mais um pouco, necessito apenas do tempo de mais um cigarro em ritmo descendente para o sonho. Por vezes tento encontrar um deserto de ideias, mas acabo sempre por encontrar o oásis. É bom estar aqui, mesmo que amanhã parta. Foi bom estar e mais estarei, não sei se aqui ou mais adiante.
Agora sim concedo seis minutos para um cigarro, segurando o queixo com uma das mãos apoiadas na perna. Isto é poder. Chamar-lhe-ei outro cigarro qualquer, enquanto outros corpos descansam entre as sombras e as luzes da minha memória.

quinta-feira, 10 de abril de 2008

|G|atices

Mesmo que o silêncio maltratasse a noite, eu não seria testemunha por muito tempo. Talvez cúmplice, daqueles autores morais que aparecem nos filmes, escondidos nas manigâncias da consciência adulterada. Talvez seja um termo demasiado forte, não sei, a minha intenção é apenas manipular o necessário para que nunca me falte nada. Nada é falar de forma evasiva, eu sei… eu sei. Por mais que aqui ande às voltas, a verdade é que acabo sempre por vir parar ao mesmo local. É pena, sinto-me de certo modo preso a isso, a esta vida de sofismas e axiomáticas aspirações a reinar o mundo num tom púrpura e totalitário.

Aqui me encontro na madrugada, fumando o resto de um cigarro em plena marquise. Cordas pejadas de roupas, vidraças que choram a húmida noite. Varandas que apenas o foram nos dois primeiros anos de existência, agora condenadas ao alumínio barato e ao vidro simples. Travessas com roldanas que guincham ao fim do ano, as molas compradas ao quilo e corda de uma material sintético, mais certo que seja proveniente de um pais do longistão.

Esta prisão que já nem me importa assim tanto. Sou apenas eu aqui, num sofá só para mim, num tapete felpudo em que o sol da tarde inunda toda a minha hora de sesta. Sim, sou demasiado desligado da vida lá fora. Pouco me importa quem morra, quem se alheie até mais que eu. Sou eu e apenas eu, apenas esse ponto em comum comigo mesmo, eu.

Para ser franco, nem se trata de qualquer género de petulância egocêntrica, apesar da minha franqueza ser confundida normalmente, claro está, por mentes horríveis e pequenas. As mais sinceras desculpas a qualquer susceptibilidade ferida, ou então para ser mais explícito, a toda a alma incrédula que se deixa guiar pelos caminhos da inveja. Que o destino não seja demasiado severo com eles, coitadinhos.

Bom, sem que me perca por esses preâmbulos casuais e com tão pouco interesse que são os outros, algo mais sinistro paira neste ambiente já de si com um karma suspeito. Pasmo-me sim por tamanha falta de gosto por aquele novo fulano que vem cá a casa, pelo menos umas quatro vezes por semana tenho de aturar aquele ar ameaçador de quem me preferia ver estendido. Que seja, mas que a minha pele fosse parar a uma estola bem requintada e exclusiva.

A mim, claro que nada me falta, vivemos bem assim. A cooperação é benéfica para ambos. O corporativismo torna-se essencial à espécie. Coabitar, servir e ser servido. Ela até é uma querida, tem lá no seu fundo qualquer coisinha de boa. Dou-lhe o desconto destes perdedores natos que traz cá para casa, lutadores de utopias que nem eles sabem explicar. Ela fascina-se com aqueles marasmos de verborreicos serões de tertúlias, da mesma forma que eu fico possesso com uma boa tira de tecido para afiar as unhas.

As luzes tremeluzentes do exterior, a janela que embacia mais rápido que o pensamento de a pensar assim. Solto um esgar sem querer, sem saber realmente que a minha vida é um festim realizado à porta fechada. A euforia tem um efeito colateral, o frustrante vazio de quando se recupera do êxtase. Acho que ela me influencia nos piores vícios, um desastre a sós.

Aqui continuo com o cigarro quase em beata fumada por um desgraçadinho da rua, desde esta janela de apartamento de classe média, algures nos arredores da verdadeira cidade. É desconfortante ver-me aqui, numa esfera de vidro, quando o mínimo deveria ser diamante. Consola-me o serviço gourmet, mas toda a parafernália de um suposto luxo distribuído em doses desregradas por toda a casa deixam-me confuso. Desde o monstruoso ecrã de plasma adquirido num espaço comercial de massa, à batedeira que nunca funcionou mas que tem tanta função. No fundo enoja-me toda esta gritante necessidade de se mostrar algo de valoroso quando se apenas é no dispensado pelo plafond do Visa.

Há pequenos caprichos capazes de me encher o gosto por alguns tempos, a verdade é que o requinte não nasce e muito menos vive em qualquer casa. Por mais que se encham as paredes de quinquilharia, mesmo que cara, o facto é que o noveau riche deveria ser uma espécie a abater.

Solteira, mal amada, emprego promissor e livre de compromissos. Nova onda, nova era, nova em tudo o que se julga ser novo. Novidade ou sublime na escolha de novas tendências, adereços, preços, cremes e mais algumas coisas que nem imagino para que sirvam. Não frita, não congela, come grelhados mas não grelha. Compulsiva, fumadora de varanda, melhor, de marquise como eu. Vegetariana que suspira todas as noites por um salpicão que a rasgasse toda. Odeio quando me dão estes acessos de popularucho agudo. É uma pobre infeliz, já disse, mal amada mas acho conveniente dizê-lo de novo. Sim, frígida, rígida, mínima, carente. Vivemos sob o mesmo tecto, sendo a única coisa que me liga a ela é todo o conforto, apesar das notórias vicissitudes de viver num bloco de betão ao melhor estilo do lobbie camarário e ver downtown a meia dúzia de léguas.

Ela adora-me, desconfio que me ame. Sei que é apenas um escape para toda a sua frustração, estamos quites então. Talvez exista mesmo Deus aqui pela terra, ou na pior das hipóteses, algures numa repartição celestial, com uma porta em talha trabalhada por S. José e uma inscrição bem gira em letras very vintage. Caramba, tenho de deixar de fumar estas pontas que ela deixa por aqui, se bem que sempre tive queda para as piadinhas com espírito. Pelo menos é essa impressão que tenho de mim quando me olho ao espelho. Sim, vá lá, apesar de nada mais me interessar que fique para além da porta do elevador, até sou um exemplo felídeo de fazer suspirar qualquer solteirona ou maricas.

Céus, finalmente aquele idiota saiu aqui de casa, ainda por cima tem um ar estranho, suspeito que seja de esquerda. Aposto que é um agiota sentimental, só pode. Sempre duvidei destes intelectuais de ar meio sujo e descuidado. Não sou apologista do fraque alugado, mas este total desgarro pela imagem interfere com os meus bigodes. Não é propriamente higiénico o uso de uma barba daquelas, e se ela gemeu, mesmo que mais um falso orgasmo, não sei.. continuo a não concordar com as camisas de bombazina e cabelo à azeiteiro.

Sim, eu escrevi bem; falso orgasmo. Admito que não tenho muita experiência com o sexo oposto, já que desde o meu primeiro mês de vida que me foi retirado todo o mojo e appeal que poderia ter. Desde então que tenho dois caroços mirrados revestidos de um pêlo quase que aveludado. Por isso também não me comovo quando aquele comuna que aspira a ser um Trotsky de esquina bate com a porta, satisfeito pela sua descarga e ela se enfrasca em Cardhu e Karelias de mentol. O meu sorriso é desapercebido… ronrono apenas e ela aperta-me como se eu fosse a tábua de salvação da sua mirabolante vida sentimental.

Depois de metade garrafa despejada liga aquela aparelhagem cheia de luzinhas azuis e vermelhas, aquela Las Vegas da cómoda direita da sala. Dança na penumbra da sala, ao som de “I shot the Sheriff” daquele drogadinho com um cabelo horroroso. Deveria alarmar-me um pouco pela sua insanidade mas o Ryphnol queima-lhe o resto do desgosto e acaba rendida no sofá. Eu, sozinho na estupidez de me fazer valer pelo único guizo que funciona em mim ser o da coleira, embebedo-me e morro junto à triste visão de Las Vegas em modo de Lcd luminescente.

As manhãs de cinco dias são sempre à pressa, mas é impressionante vê-la. Numa única e singular palavra, impecável. Segura, atraente, feminina, garrida… adoro quando usa aquela cor de baton… enfim, enche-me o pratinho com mais uma refeição gourmet e desaparece atrás da porta. Aquela mulher renasce em apenas três horas de sono.

Nas manhãs de fim-de-semana, acordamos juntos, sonolentos, desgrenhados, sem nomes, sem pressas, sem rostos. É tão bom quando chove e ficamos a olhar para a cinza que pinta toda a urbe que se cola com ganância à metrópole. A primeira coisa que fazemos é fumar um cigarro enquanto se espera pelo café, e sei que no conjunto, pensamos que a vida é curta demais para aqui ficarmos.

Eu não tenho nove vidas, e muita sorte que dure nove anos por esta marquise do sétimo esquerdo com um apartado extenso. Ela já não tem propriamente vinte anos e eu nem posso responder-lhe à altura de um homem. Ambos sabemos que no fim das histórias deveria haver sempre um sorriso de esperança, mas acabou-se o tabaco e o meu estado benevolente cessou com o telefonema daquele filósofo de subúrbio. Um dia que me dê para a pura e maquiavélica maldade, urino naquele ofensivo casaco de cabedal marroquino. Napa nem num banco reles de autocarro de província.

Desligou-lhe o telefone na cara. Sorriu. É bom sinal, será o início de um bom Domingo de vida.

segunda-feira, 31 de março de 2008

|P|erfume em tom |M|aior

De tanto a flor que sente
Sente e se sente assente
Acentua-se o pó no pólen
No ar que se respira e morre

E me inspira…

Não sei a quantas ando
Com quantas se nem tantas são
As mantas, travessas e travesseiros
Não sei, mas cheiro

E nem meio cheio fico…

À contraluz, ondulando a paisagem
Finda o dia em toque de brisa fria
É beijo, abraço que enlaço além mais
Mais que tudo, é um nada vazio de mim

E recomeço por onde sei…

Qual coração sem fórmula
Acção adicional, adicionada à mácula
Pouco se compadece a alma
Ao reencontro num caminho

E não me cruzo ao acaso…

Sem outros gestos distantes
Doce gosto pendido nos lábios
Rendidos, esquecidos, tramados
Não sei, mas sinto

E a espera estala em mim…

Enfatuado, crispado de manto azul
A velha guarda cravada na atenção
A olhar de outros olhos que nem ouso olhar
Passam no vagar necessário de mãos urdidas

E absolvo o pecado em labéu invertido…

Aquele rosto envolto em redondilhas de pranto
No beijo de uma viúva de boca enlutada
Pensar a lágrima caída, redonda, pesada
Beija a chuva o mar salgado, sendo o rosto a salina

E nada, mesmo que tudo fosse…

Os nadas de nada, nenhuns de nenhures
Rudes são as mãos que não esperam
Sujeitas à deriva da vontade
Maldito seja, eu e o meu nome

E respiro as laranjeiras em flor…

quarta-feira, 26 de março de 2008

|1|3|1|

Leva-me para além da história que me contas. Tens graça, linhas suaves transfiguradas neste querer-te mais. Mais amor… dá-me mais. Arranca-me do papel, para fora das margens. Sou-te contada em segredo, em modos de escolha, nesta pele de seda.

Dá-me mais… mais amor. Feita na medida do teu sorriso, poente de um destinado caminho. Puxo-te para mim, bem para o meio das minhas pernas desnudas. Dá-me amor… dá-me mais.

Pertenço-te na palavra que acredito nascer em mim. Arranco-me aos poucos de raízes nefastas, quero que me tenhas sem venenos. Lê-me entre as palavras, murmura na minha língua, percorre-me na saliva que espero. Vem amor… dá-me mais.

Sinto o corpo ondulante, de mais, por mais, demais. Aguento-me, sustenho-me só por este instante. Vem, dá-me mais… não consigo, não quero esperar.

Agarro-te em força maior que o próprio desejo. Ávida de ti, sedenta de me provar nos teus dedos, pelo teu corpo. Sou louca, louca, e mais louca porque me repito. Repito-te, dá-me mais… mais amor. Vem, vai. Volta, volta-me e vem. Vai e vem.

Intensifico, revoluciono, ao rubro roças entre as minhas paredes. Aperto, engulo, dissemino-me entre a atmosfera e o teu corpo. Estou quase a resolver-me, a confrontar-te olhos nos olhos, dá-me mais… vem, dá-me.

Atinges-me certeiro no espasmo, no gemido, quero-te mais, amor… mais fundo, vem. Conheço o teu gosto, esse sabor de rosto duro e fechado. Cada traço que me lanças, quando a tua força me comprime, e eu peço-te, vem amor... quero-te mais.

Inventas-me a cada instante, percorres-me por curvas que nem ousara imaginar. O regalo da rudeza no firme peito que te ofereço, este abraço colado à delicada pele que me rasgas de mansinho. Sabes-me àquelas tarde findas de universo do Sol, ao calor que me trouxe até ti, à imensidão constante dos teus olhos terrenos.

Sabes-me a mais que fruta, na minha boca, a tua seiva maturada ao gosto quente da tua febre. Dá-me com tudo o que tenhas para me dar, vem com tudo o que tenhas para vir. Apenas vem e dá-me, sem recorrer à certeza de tanto querer, na consciente entrega construída a dois. Entre os pólos impera o magneto de tamanha vontade, esta que me aflige na tua ausência.

Esfumar-te sobranceiro, tingir o fuste nas minhas cores garridas, nos tons de luta libertina e jocosa. Aglutinar-te em termos impiedosos, imperativos, incessantes e travessos. Vem. Dá-me quando te der, preenche-me quando te estimulo, injecta-me quando te monopolizo. Goteja, queima, vocifera, derrama e lambe. Prova, comprova, mistura e entrega-me de volta.

Na boca, pelas tuas mãos num todo que sou, por toda em que me desfazes. Lavra-me dia e noite, sobrevive ao dilúvio da minha enxurrada. Olha-me como se nunca me tivesses visto. Olha-me e sente-me nua, tão pura… apetece-me, aqui, aqui mesmo, sentir-te bem fundo.

Essas mãos que me tocam, as mesmas que me escrevem em toda a pele. Esta loucura da sede que me dás a sentir, arredada do sonho que termina da mesma forma. Vem, mais fundo, para além da longitude dos nossos corpos. Quero-te mais perto, mais quente, bem dentro.

Mais adiante, sem perturbar o sonho instalado nos meus olhos, abraço-te em toda a noite, até que me preenchas o dia. Instala-te entre os meus ossos, no berço criador de nós, seio de tantos sorrisos e suores. Vem, mais forte, bem denso como o vento que me queima no desejo do sol. Vem, com a tua força de homem que me pressiona. Dá-me, vem oferecer-me aquele gesto que só tu sabes, faz-me sentir aquela sensação no fundo de mim. Apenas e só, vem e dá-me tudo.

quarta-feira, 5 de março de 2008

|O|ssos

Neste enclave tão estreito, apertado pelas próprias mãos, seguro-me entre os ossos. Esses compostos porosos, ansiosos de maiores plenitudes. Dispostos por ordem, pela regra que alguém se lembrou de lhes dar nomes tão estranhos quanto nós. Ossos meus que não temem o ócio de Domingos. Nem tenho em memórias quantos são, quantos já foram, os ossos e as letárgicas tardes.

São ossos, homens e mulheres convexos ao natural, julgam-se inquebráveis mas a tamanha palidez segura-me na certeza da fragilidade. Suportam-me o mundo no mundo, para o mundo que está mais além deste, até à linha que me separa daqui e de lá. Simpáticos, silenciosos por entre a carne, a estrutural rigidez do projecto inalterado, que de tão forte nos tomam a consciência tola de pensar que não podemos perder a fraca figura vertebrada.

São-me espinha na verticalidade a que me dou, por vezes, sujeitando-me à dor que me enche a boca de palavras alheias e avessas. Ossos que enchem a pária de maleitas, tanto suportam homens como alimentam o infortúnio. A pátria que os pariu para depois os ver cair por qualquer coisa que os unia para além do músculo. Mais valorosos ossos sem nenhum mal que lhes padeça, secam hoje ao sol entre as extensas planícies da primavera.

São quentes à fria sombra do esquecimento, são frios no intolerante golpe da fractura. Até ao tutano, sem que me dê a volta pensada, da lasca que sobra de um corte transversal pela hipotética evolução. Se continuo aqui entre eles, e eles em mim permanecem, que mais ossos são que não estes, os que penso e faço em mim. Que mais ossos que não os outros, se tanto os namoro sem os querer. Se tenho ossos que nem meus são por direito, enfim, outros já terão suportado e aturado os seus queixumes. Lamento eu saber que não os tomo por minha conta, serão de novo vadios quando me retornarem à procedência do pó.

São ossos, duvidosos porque não os vejo. Dizem-me que os tenho, penso que os sinto, acredito que sejam. Constroem-me mil ofícios, mas o mal prematuro da lesta destreza confina-me ao saber só meia dúzia. Mais ossos são na ausência do meu breve coração colado ao teu, enjaulando-me a alma entre as costelas, sem que o espírito se aprisione a pensamentos menores que a liberdade.

Não se fazem à graça da tormenta seja qual for o seu nome, mal a culpa se afasta por entre as nebulosas ocupantes do céu. Não menos pessoa seria, sem estes ossos que me fazem nesta cadência de pensar, sobrepondo-me como pedra a pedra numa muralha. Mantém-se o anonimato do que me fortalece a culpa de desvendar que o obituário não é mais que uma relação de ossos descomprometidos e desvinculados do fardo da carcaça.

Alimenta-se a saudade com palavras cinzentas, pinceladas de grés na ossada que me morre pela boca. Os aplausos não se coadunam com a posição inerte colada à sombra da memória tornada imagem. Criam-se clareiras por entre o destino, decompõe-se o corpo num processo hostil, ossos que gritam pelo despego. Sustentam-me as falanges entre a concepção e o término das palavras. Esta afeição criada com o que julgo ser meu, este esqueleto que não me limita no papel, marca antes o desapego pelo condicional.

Ossos deixados na berma da torrente, nus e lisos, ao sabor do imaginário de cada um. São jazidas de supostos indivíduos com nome, perguntando-se antes de quem eram e não quem são. A identidade mantida entre a carne, esquecidos ao acaso, omitidos, guardados em estúpidas caixas que se esquecem com o tempo. São ossos, no dolo de apenas lhes chamar assim, apenas ossos, só ossos
.

domingo, 24 de fevereiro de 2008

|t|enebras

Em boa carta te envio este pesar sem olhar para trás. Descortinado em tantos nenhures da alma, presa apenas a um aquém da saudade que se estende a uma chaga de lágrimas. Meu filho, repito-te, meu filho de legítimas virtudes, fonte de tão saciadas bocas para quem não eras apenas um inocente e incólume ser. Os incrédulos sorrisos batiam asas ainda antes do anoitecer, ao crepúsculo das palavras que segredavas entre essas paredes, tornavas-te cada vez mais aço, mais forja e lúgubre poço sem fundo.

Sou tua mãe em sentimento feroz do silêncio que carrego, pesando-me nos ombros a sobranceira vontade de quereres partir. Pari-te em tantas dores, guardei-te em tantas esmolas e frios. Fiz-te homem de sabores imensos, tão intensos e sem saberes quem eras na verdade. Pequei pelo abandono à arte de te deixar no fel, às lonjuras que vivias nas minhas complacentes carícias. Aprendeste a lidar, não querendo mas consumias o mal. Em tão inversa palavra me dizias, e em tão viciante mal me olhavas. Era eu a mãe de todos os horrores, o teu grito pelas grilhetas na maior das vontades, a tua.

Das tuas primas nefastas com que a tua alma se deitava, deixavas o corpo num canto ao acaso, sem memórias maiores de alguma noite mais digna que um trémulo brilho de candeias. Suspiravas. Aspiravas a mais, como um guerreiro que não teme a derrota, nem a morte ser vista assim. Dizias-te perene, sem vacilar, e no entanto, a tua arena era o meu ventre. Tão meu menino, tão basáltico este orgulho de te ver na espiral do meu abraço.

Sinto-te cheio de um sangue que já nem reconheço a cor, nem cheiro o pesar que te ensinei a ter. Vejo-te num espectro que me cega em pungente saudade por já não estares, por já não seres quem eras. Fazes de mim uma sobra, um resto de trapo sujo, condenada a ressequir-me à luz dos teus olhos. Não me orgulho por completo, preferia o teu coração negro, aliado à tormenta de não te encontrares.

Nem a sombra das tuas memórias te trazem de volta. As tuas legítimas esperanças afastam qualquer ensaio de um luto que não te caiba. A servidão a que se estendia o teu sentir, tão inebriante que até eu me tornava tua amante. Oh, como me eras tão mal... a melhor das promessas para disseminar a semente de um império. Tão mal que me eras, tão bem que te curas.

Hoje sou eu que me provo, e tu já nada me és.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

|p|o|l|a|r|

Desce das estrelas e diz-me como devo respirar-te em alegria constante. Esse teu sabor enrolado em papel rebuçado que trazes em pergaminho de ouro, tesouro de fim de Inverno. Floresce, cresce dentro e germina para fora.

Vem cá abaixo e mostra-me como se traçam as linhas mais que imaginárias, com este giz de desejo que tenho nos dedos, almejando reescrever-me todo por ti.

Desce mais um pouco, colocando os teus joelhos nas minhas costas. Apara-me, sustém-me a respiração que exalta a noite, porque sentir-te é expelir todo o momento num trejeito de tanto olhar para cima.

Trazes fuligem na pele, cisco da paixão combustiva. Vem, desce à terra que sou, enriquece os meus silêncios com as tuas frias águas de prata. Dispersa por mim o encanto da noite, sendo a alma um peso menor ao alcance da eternidade.

Retorna à linha que nos une ao horizonte, pois a distância é apenas a maior extensão da conquista. Movimenta-te em sentido descendente, acrescendo o semblante, o teu rosto de constelação.

Aproxima-te, vem só mais um pouco para dentro de mim. Preenche-me a volúpia da carne, a fruta madura, do sumo em que te torno quando te aperto. Aguardo-me sem reservas nem ansiosas pressas, muito menos famintos desejos me enfraquecem os músculos.

Amor, meu amor, ar quente dentro de um sonho, resguardo de forro precioso. Fina casta de sabor a força, menina bonita em tão alto céu. Desce até me olhares de frente, no exacto ponto em que te desejo, em mim. Escorre pelas letras que te ofereço, descai pelo teu ombro o verbo tornado acção na palavra digna de respirar. Doce aroma silvestre, disposto no arisco e arredio dorso desnudado de preconceitos.

Cai sobre mim, infindável crepúsculo de manto arabesco na tua trama de menina fábula. Torna-se a cadência das palavras em vagas inusitadas, escondidas na névoa que se instala aos poucos, visitando a humidade todos os poros que te respiram. É teu o timbrado solfejo na melodia tangente dos lábios, deleitosas ondulações circundantes, circulantes, sitiantes.

Designado o gesto nómada da vontade de nunca parar numa só estrela, talvez me disperse até ao mar, dissipando o etéreo gosto por ti em qualquer mar bem-aventurado. Escrever-te é dedicar-me à luz, à melodia desvendada na tua língua, nestas nossas peles coladas, como as sombras vibrantes de vida.

As mãos criam-se em corações que querem, transportam-se os sentidos até à flor do teu pólen. Impregna-me mais com esse unguento de safras murmuradas a sós. Regressa à origem, descendo por todo quem sou, onde o céu começa e o meu rosto termina, por onde a maré avança e o mundo finda. Aqui, dentro de mim.

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

|n|ós |d|e |a|reia

Com a graça de quem desenha na areia, rabiscava uns traços semelhantes à sua face. Aquele gesto sem ser esquecido, encadeado pela lógica do costume passeio na praia deserta, sem fim à vista da sua semelhança com os raios de sol.

Coubera ela em todo um rasgado sorriso, soubera eu fazê-la mais extensa que o mar. Sem optar pelo silêncio, a ausência de todas as palavras não lhe calavam a beleza. Sim, uma sereia abandonada na livre vontade do pensamento. Deixava-se ir pela corrente salgada das emoções, sem nunca equacionar a probabilidade da chuva encharcar todo o areal. Saber-lhe-ia sempre bem, sem que a incerteza lhe corroesse o gosto.

Há solturas, fitas vermelhas esvoaçando entre os seus cabelos. Os gritos de felicidade embalados nas ondas, escrevendo na areia as tantas palavras que nem o coração sabe dizer. Sente. Sente como quem vive.

Meu beijo doce de mar salgado, calor que sustenta o coração alado. É nosso... todo este tempo, mesmo que a tempestade assuste os fracos. Flamejante, intenso e inaudito, o encrespar dos corpos na turbulência das águas em recônditos lugares, tão mais fundos que a própria vontade.

As mãos em concílio, em singular nó, constroem o árduo caminho do desejo. Saboreiam a plenitude do tempo cerrado, pintado a azeviche carregado, na veemente força da colisão entre o mar e a terra. Este espesso sentido que se me injecta nas veias, dilatam-se em devaneios, em conluios tempestuosos de prazer. Será esta sôfrega paixão aliada do dominante temporal. Viciam-se as ondas no embate contra os rochedos, espumando este querer por todos os seus recantos.

Martiriza-se o corpo em chicotadas de pétalas carmim, aos meus olhos que enegrecem com a noite, esperando a diáfana mão que me enleva a outros céus. O sol da meia noite desperta os amantes, no pesponto dado nas mãos que os cosem. São puras esperas, maiores suspiros do bafo quente das bocas que se amam, nas salivas misturadas, nos fluidos que escorrem como um périplo pelo seu corpo.

Nada se esgota, mesmo sendo a finidade do corpo que envelhece, por vezes, como um castigo que se tem. Merecendo cada ruga que me surja, chamá-la-ei de escrita empírica, como cada palavra riscada no areal. Cada singular marca que o mar leva com a sua língua, darei o mesmo nome de quando toda ela me lambe a pele.

Serei mais um nada, apenas este algo tão forte, tão mesmo que o coração sofre por se sentir tão analfabeto. Sinto, sei como a sinto. Toda a manhã desperta em mim, resguardado entre o sol e as nuvens dominantes do horizonte. E a noite aliada à lua, não me querem a dormir num descanso de como alguém que se esqueceu de viver.

Quedo-me entre o respirar de mansinho e o sorriso. Emana o corpo um odor a saudade, na simples espera de um pequeno minuto. A vontade anseia pela entrega, a pele enregela com vontade de fundir-se em lava. Os meus olhos sorriem no choro por sabê-la a terra e mar. A minha única e verdadeira dor é fustigar todo quem sou no todo que ela é. Só assim, em maior dor me quero.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

INRI

Escrevo momentos por entre as franjas do tempo. Encontro-me. Sou eu, tal como me compus, um emaranhado de instintos e paixões.

Devoro os meus próprios pensamentos, deliciando-me com as marcas indeléveis que carrego. Neste lado, onde me escondo, pleno de silêncio, nada me atinge a alma indiferente ao que a carne sente.

Mais fácil seria traduzir a minha existência em pecados tomados de empréstimo, albergando em mim a infindável e insolvente realidade. Mas o que determina a verdade do meu ser é indizível e inacessível, peremptório e inegável.

Juntam-se em círculos, pequenas e justas, as palavras que criam redondos vocábulos. Existiria uma outra forma de viver sem ser esta, sem saber qual parte de mim abdicará da razão. De maneira sucinta, os volumosos pensamentos de cada parte dissecada da minha pessoa, tendo apenas de cabeça, a chave para me desmistificar.

O meu corpo já não fala, nem teme o tempo. Em infindável despojo, o desejo toma-me a consciência outrora invicta. Sou eu, apoderando a inefável teia das minhas próprias maleitas.
Caminhava para o inseguro, a sombra que me esperava como uma amante de rosto escondido. Comedida e sem maldade aparente, a pausa à sombra de um rochedo provocava-me mais a ânsia de quem sou. Renunciei o Sol, denunciei a Lua, apaguei a luz como quem desenterrava ossadas de memórias.

Não saberia tão bem amar o destino se estas mãos não fossem do tamanho da alma. Querer-se o mundo, nos olhos de quem chora a vida, saber-me em mais notas – mesmo que soltas – em alegorias e fábulas do quotidiano. Constrói-se o Ser, assim.

Assim saberia a pele continuar a secar a alma corsária, sem nunca saber o rumo do destino. Padecia, vacilava o poeta por outros fins que não os seus. Em outros afins, apêndices com sinónimos já nem lembrados, continuaria a teimosia em asfixiar a voz metálica do gume.

Lembro uma noite, sem que as mãos tocassem as águas, separei-me de toda a conspiração. Tão más, aquelas tão más palavras. Mesmo tão feias, decidi-me pelo perdão.

Precisarei ainda mais de Deus, exultarei o nome de quem me forma a palavra. Disseram-me os céus ao ouvido, todo eu era obra consumada e eu teimava em não escutar.

O maior de todos seguirá pelo seu próprio caminho. Ensinem-se os feios a não se parecerem tão bons. As couraças regeneram, as palavras de tinteiro terminam onde começa a voz. Irreversíveis aos actos, os loucos seriam menos felizes na lucidez que possuem os bravos.

Será a tontice uma forma de embriagar velhos lobos do mar, procurando talvez uma história entre cheiros destilados de solitárias lembranças. A tentativa desajustada corrobora o perjúrio de vãs e boas intenções. Como quem despeja uma garrafa sobre as emoções, dá nós à corda que o matará junto ao cais onde morrem os homens que se abandonaram. Enganem-se os mentirosos pelas vestes de papel carmim, não há mais sangue que verta pelos copos de desconhecidos.

Desculpem-se os idiotas que riem e nem sabem porquê. Os iluminados, amantes de outras putas, são parvos virtuosos que insistem nos sonhos. Outros quedam-se, outros inquietam-se. Maior será a luz de quem nas trevas viu e às quais não se abraça desregrado.

Em toda a mortalidade que me reveste, a única sentença é não alcançar a eternidade que o tempo possui. Subjugará o mal da descrença à maior fé que existe no Homem.

Abandonei-me em tantos momentos. Errei, reduzi-me, desfiz-me um pouco por todo o lado. Já nem certo estou das esperas que fiz à felicidade para a esganar. Fiz da descrença minha amante, considerando-me um filho de sangue menor.

Era uma constante tomada de querer em punhado de força vazia. Na sobeja repetição de morrer em braços que não estavam lá de verdade, circundei as verdades no silêncio que já não quero.
Denunciem-se os malditos, apontem-se no perdão que é mais forte que o nojo. Anunciei-me à terra mesmo quando não me ouvia, e algo maior que as próprias cabeças, resguardou-se na fé de me ver andar.

Respirei. Pensei. Senti. Encontrei.

Mergulhei na purga, na soltura que se faz no peito, finalmente a paz do reencontro dos espectros. Os lábios que constroem tronos, no nome que me chamam, na luz em que me criam. Nas mãos criadoras, o rosto tomado pela alegria de este tempo. É o ventre da mulher o maior dos fecundos templos, beijando-lhe a pele, sabendo-lhe a mel, ao gosto me fazer vivo.

Glória a quem vive e faz do único sentido do que somos, o verdadeiro trajecto para fora daqui. Amai-vos como eu vos amo. Amem-se como eu amo. Dedicar-me-ei assim, da única forma que sei fazer, sendo-o como sou.

Graças a Deus que existes.

domingo, 13 de janeiro de 2008

A.

Deitada na cama, todo o quarto me parece igual. Na estranha aparência que liga a realidade ao que vejo, por raros momentos, tenho a noção de que o mundo gira no sentido correcto.
A quebra do silêncio, na minha profunda respiração, olho para bem mais longe que as persianas meio cerradas. Pestanejo, sinto o ardor no olhar de quem tanto olha para nada. Acima dos meus ombros, bem acima de qualquer suspeita, desespero pela rugosidade instalada nas minhas paredes. Toda a muralha do meu reduto faz-me morrer sozinha no dia.
A tarde, essa que morre comigo, na sua lentidão do costume. Acompanho-a. Oferece-me as suas mãos, como amante que me embala. Desejava conseguir acompanhar o teu coração, como a sombra segue o sol. Ali, para além do horizonte, tudo mais que a minha realidade.
Nos olhos de ver, é tarde demais para recorrer a uma acção que interfira a inércia. Fico-me na quietude, no estranho combate em que tudo se entranha, na minha voz que te grita. Incessante e exaustiva, é sim, toda a minha vontade de te abraçar. Este espelho que me enegrece, deformando o que já por si está, as horas que passam em corrente maior, sem que me sinta segura aqui.
As asas que me ofereces, de cada vez que nos encontramos. És tudo o que nunca achei, mais além daquilo que procurava. No teu silêncio carregado, calcas a minha pele. Arranhas-me com o teu sussurro de emoções. A sensação de me beberes quando consumamos o gesto, quando sais de mim e me deixas quente, por dentro.
A estreita linha que nos une, bastante para fazer do mundo um lugar pequeno para nós. Tu e eu, a cada reencontro, a entrega que se dá neste sentido, voraz em esquecer tudo o resto. Tu e eu, paixão. Amor, permite-me que te trate assim, Amor.
Queria poder agarrar-te com mais força, em vento que enche as velas. A vontade, tanta mais que toda aquela que possas imaginar. Queria prender-te ao meu peito, colar-te em todo o espectro de luz que és num outro brilho. As tuas mãos, macias no toque, fortes na posse, no meu quadril despido pelo nosso desejo. Amor, diz-me em voz segura, não te permitas mais a esta longitude que nos aparta do mesmo entardecer.
Mesmo que me mintas e te escondas, atrás desse mesmo papel inventado por ti. Mesmo nesse teu mau génio que admiro, diz-me que o teu coração, na bondade do homem que preserva, não se esquece de quem o espera.
Concede-me o desejo de me apoiar em todo o teu trono. Aveluda-me a língua, gasta por esgotar-te em palavras que te chamam. Oferece-me outro do teu sorriso, tornando bem maior o orgulho por te sofrer em cada instante do dia. Esperar-te Amor, em que nem as pedras ficam indiferentes, as mesmas que servem de referência na rota de te voltar a ver.
Que me ardam os olhos de tanto te olhar. Que te ame em palavras semelhantes que me escreves. Eu, palavra em que me transformo, Amor, palavra que te sou e pertenço. Escrevo-te no escuro, no mesmo em que guardo a minha saudade. A sombra que nunca te larga, a mesma que segue o sol, até onde estejas.

quinta-feira, 10 de janeiro de 2008

Queijo bom, queijo mau.

Roliço, submisso, bonito menino que tive na mão. Apaixonada, ruindade gostosa de te azedar nas minhas mãos. Tens grito, desespero, fundo esse que me deixa louca. Tens fé, fundo que não atingi, tens a força de homens que não és, estás louca. Estou em mim, estive em ti, por todo o lado, sem querer chegar. Não partiste nem chegaste, não ficaste e nem vieste sequer. Não te entendi, não me resolvi. Não te resolveste nem me dissolveste. Não quis! Não me quis! Querias. Crias. Acreditei que te matava. Acreditei-te, em tantos créditos. Crivaste-me de balas na tua saliva. Ai a tua língua. Em mim, em ti, de mim, para ti... que é de nós! Sou boa, sou má. Sou melhor, já estive melhor. Para bem de nós, melhor dos melhores. Somos momentos, pedacinhos meus em ti. És boa, repito-te. Não te repitas, repete-me. Remete-me para o teu recanto, querendo ser tua dor. És-me mais que sol. Dás-te mais que lua. Façamos, fizemos, faremos. Disseste. Disse-te assim, como era. Desnudei-te à força. Eu gosto. Gostei que tenhas gostado. Meu menino, depravado, sucinto. Inacabado, o meu desejo por ti. Meu bem. Fui mal. Foste bom entre as minhas pernas. Pelo teu corpo. Por entre naufrágios para nunca voltar. Vida. Sim, aqui dentro de mim. Incessante, investias em mim como tempestade contra o molhe. Molha, molha-me. Escolhe a lingerie. Cobre-me de beijos, injecta-me o teu veneno. Secar-te as lágrimas, deteriorar-te todo o mal. Meu bem. Meu azedume dos dias em que sorris menos, quero-te. Vamos, quero pintar-te. Aos teus olhos, sou fogo que te conduz. Lambo-te. Inflama, reclama por mais. Menina roliça, submissa, tão bonita que ficas na minha mão. Apaixonado, ruindade gostosa de te adoçar. Tens silêncio, tranquilidade adormecida, nesse teu fundo que me deixa louco. Tens fé, superfície de seda, delicado papel de arroz, deixas-me louca. Estás em ti, estiveste por mim, concentrada num ponto, até te dar tudo. Cheguei e já não parti, chegaste e já não foste. Entendeste, resolveste-me por completo. Quero! Queres-me! Salivas, pedes por mais te querer. Dava-te vida na saliva dispersa por ti. Ai a minha língua. De mim, por ti, para mim... por nós. És má, és boa. És pior, melhor ficas assim, comigo. Para mal nosso, queremo-nos mais, em pecado que seja, todo nosso. Partilhado. Estou. Sou. Estás. Somos. Repete-te. Repete-me. Remeto-te para este meu canto, e depois aquele... e mais outro além, sim... mais abaixo... isso. Pedacinhos teus que são tanto. És bom, repito-me. Não me repitas, não me acabes, continua-me. Sejamos, fomos, seremos. Disseste. Disse-te assim, como eras. Desnudaste-me em doçura. Gostaste de gostar. Minha menina depravada. Sinceramente, quero-me tua, possessa deste nosso ser. Um e outro. Outro de outrem. Meu bem. Meu mal.

quinta-feira, 3 de janeiro de 2008

Mata-me

Com o teu olhar de enlevo

no sorriso que te é do coração
perguntaste-me...
O que foi?
No absorto momento
apenas me desfazia em deleite
respondi-te...
Nada. Olhava-te apenas.
Sorrimos.