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sábado, 22 de julho de 2006

Correspondente de Cabul - O primeiro texto




É de dia... é de noite... que importa isso, apenas é mais uma história igual a tantas outras. Meras palavras, ditas por alguém que viu o que mais ninguém vê, num simples café.
Tudo começa no café e tudo acaba no fundo da chávena vazia, e do cinzeiro repleto de beatas semi-carbonizadas que jazem entre a própria cinza e o resto de uma pastilha de menta. Cheira a queimado, eis o incenso dos nossos tempos, goma queimada com leve essência amentolada.


Sinto o tempo a passar entre os dedos das minhas mãos. O tempo flui tal como o meu espirito pela atmosfera. Disperso-me por todos os cantos. Oiço lamentos, sorrisos, injurias, mentiras, declarações, histórias de amor e de momentos. Não interessa se bons ou maus, não importa a relevância que tenham para mim, são momentos apenas. Os bons e maus, todos juntos no mesmo espaço. Respira-se a atmosfera, o ar carregado de fumo... hoje não tenho direito ao habitual rebuçado que vem com o café, é pena.
Antes de tudo começar no café, a viagem de autocarro. Para cá, para lá? Já nem sei ao certo para onde, qual o destino? Esqueci.

Uma mala cai. Um velho homem levanta-se para a ajeitar novamente. Ele cai com ela, as forças já não são as mesmas... é a vida. Dois jovens falam, são drogados. Testes isto, testes aquilo, hoje as analises deram negativo, estou limpo, não meto nada desde a semana passada... ex-toxicodependetes? Não acredito. Apenas burocratas de um sistema que teima em não cair da cadeira como alguém caiu. Ex-toxicodependentes em que o tema principal é o que os faz realmente ainda por cá andar. A viciosidade de ser ou não ser, eis a questão, a droga.

Senhoras de já alguma idade falam de um modo estranho, mesquinho e insensato, meu deus! Com a idade que têm, já deveriam saber que é feio falar assim dos outros, principalmente dos que não estão presentes. Que é feito deste mundo? Este mundo não é o meu...

Volto para o café. O ambiente torna-se cada vez mais pesado. Hoje para alem do rebuçado também não tenho direito a ver os fantoches da MTV. O hipermercado do que mais se vende e do que de pior há no momento. Mas sempre dá para entreter... aquelas carinhas bonitas, escolhidas a dedo, como se o mundo fosse todo tão bonitinho e cor de rosa. As meninas com carinha de adolescentes ainda mal criadas, os meninos sem barba com carinha de pães sem sal. Que coisa enfadonha... ao menos a música que dá na rádio faz-me lembrar bons velhos tempos em Paris.

Saio do café mas continuo a escrever, as pernas levam-me para onde for necessário ir, as mãos escrevem o que devem escrever, tudo normal cá por baixo. Senhoras atarefadas cruzam-se por mim, pisam as pedras da calçada sem ao menos pedirem desculpa. Quantos de nós não passamos de meras pedras de calçada. Ao menos fazemos figura para turista ver. As pastilhas coladas no chão, o serviço de um cão junto à árvore moribunda. Velhinhos juntam-se aos círculos, pessoas passam para um lado e para o outro, crianças gritam, os pombos no chão e promessas no ar.

Já descobri... está a anoitecer. Antes amanhecia mas agora anoitece. O tempo passa depressa demais pelas minhas mãos... o tempo passa e eu fico a olhar para onde mais ninguém olha. Fico a beber o meu café enquanto a escuridão se aproxima e as pessoas lentamente... fluem pelas ruas. Pisando aqueles que são pedras, perdoando as parasitas burocratas, ignorando tudo e todos. Tudo é menos importante que a estabilidade social, todos nós somos mais importantes que uns e outros...

Volto para o café, não me apetece acabar por aqui, ainda há muito por dizer e por olhar. Se dantes vagueava pelas ruas para olhar, agora vagueio o olhar por todo o lado. Sou o correspondente, o enviado. Apesar de nada ter a ver com este mundo, de viver num mundo diferente dentro do próprio mundo, sou eu... o enviado.

Já estou em casa, já deveria estar deitado mas não consigo, são 3 da manhã mas continuo a escrever. A minha miuda espera-me, vai-me levar para no sono, para bem longe daqui. Está ali na minha cama, envolta nos meus lençóis de desejos. Vejo-a, sinto-a mesmo ao pé de mim. Sou feliz como sou, mesmo neste mundo... devo aproveitar este momento a que chamamos de vida e amá-la, tal como merece... tal como merecemos. Um fôlego, uma paixão para que tudo seja nobre, tal como as nossas almas.

Acendo mais um cigarro, já não tenho conta do que já fumei hoje. Não sei porque razão mas hoje o dia foi importante. Estive mais atento a tudo o que vi naquele café. Enquanto fingia ouvir os meus amigos... pairava por cima de todos.

Faz frio lá fora, é tarde e chove. Ela mexe-se, um trovão... e a minha pequena remexe-se, assusta-se. Vou-me deitar ao seu lado e abraçá-la. Descansaremos num sorriso, num descanso de deuses. Amanhã é um novo dia, tenho de voltar ao café. Se antes estava farto das mesmas caras, agora que as conheço, todas as que por lá passam enquanto eu lá estou. Cada um é uma personagem normal, e ai vejo a importância que eu tenho em cá estar. Não me sinto superior, sinto-me sim amado e desejado por alguém que eu também tanto amor e desejo... a mulher que me completa e faz feliz. A mulher com que durmo todas as noites... a minha almofada, claro!!!

quarta-feira, 19 de julho de 2006

(Fogo de...) Artificio








Sim!
Sou eu quem te escreve, num pedaço de cartão da embalagem de detergente.

Porquê?
Pareceu-me indicado. As mesmas palavras, nem sempre têm a mesma distância ou o mesmo significado. Por vezes nem importa de como são usadas, nem se distinguem de quem as pronuncia.

Aparentemente...
Estou bem, mesmo que a minha vontade seja parecer o contrário. Apetece-me, sinto-me assim. Hoje quero estar fastidioso e de mau agrado. De cada vez que abrir esta boca, que se abata uma tempestade em cima de um fulano qualquer, ao acaso, no outro lado do mundo.

Sim, já te disse que sou eu.
Aqui, à espera de finalizar um dia em que manifesto um mau génio. Não me sinto permissivo a nada e para nada. Mais intolerante que o costume, porque não? Não quero que tomes as minhas palavras num sentido contrário àquele com que são escritas. Limita-te a ler, medindo em cada uma, a distância que têm com tudo aquilo que nos liga.

Não quero!
Nem digas que eu embirro, por tudo ou por nada, qualquer coisa! Muito menos me apetece que me digas que isto é tipicamente de homem. Não me classifiques! É tipicamente meu, só meu! Sou único, exclusivo, exigente, consumidor inveterado, um drogado de mim. Monopolizo-me para consumo interno, não quero saber.

Exalto-me!
Porque não acho, tenho é a certeza de que quero ser ríspido. Exijo que me atures. Vou-te fazer mal, sem que seja algo de grave. Espero apenas pelo momento certo.

Não!!
Já te disse que hoje me apetece andar desalinhado, sem pentear o cabelo, de camisa mal abotoada. Mesmo que não te tenha dito antes, é como se já o tivesse feito. Se foste apanhada de surpresa, é porque o teu instinto premonitório não funcionou. Tudo conspira contra mim!


Vou continuar a reivindicar pelos meus direitos. Vou reclamar, jurar que te processo de cada vez que me revirares os olhos. Vou fazer greve das boas maneiras. Dizer-te que isto não pode continuar assim, desta ou de outra maneira. Não interessa como, não pode!

Não te rias!
Não acho nenhuma piada. Vou partir algo aqui por casa, de propósito. Não gostaste, pois não? É para que tomes consciência que não me sinto contente. Vais gritar, dar força aos teus pulmões. Eu, com cara de amuado, afasto-me de ti, desarrumando tudo o que estiver ao alcance das minhas mãos.

Brindo...
Entrando na competição de esvaziar o copo de bebida, o mais rápido que consiga. Mesmo que me saiba mal, vou beber. Eu quero que me saiba mal. Vou chamar por ti, pedir que te sentes à minha frente para te dizer que apenas quero estar sozinho. Não te afastas muito, pois a minha solidão de ti é não sentir-te a mais de 5 metros.

Sinto...
A transfiguração permanente do meu rosto. A cada ímpeto desta desconcertante sensação que me passa pelo sentido. Chamo por ti, pela milionésima vez. Quero esgotar a tua paciência. Sim... porque eu quero, mas não quero.

Entretanto...
Chegarei ao ponto em que saio de casa, batendo com a porta. Saio como se nunca mais voltasse. Na melhor das hipóteses como se fosse demorar uma eternidade para voltar. Não me despeço de ti.

Mostro...
A minha má cara ao mundo que está contra mim. A luz incomoda-me, o movimento implica comigo, mais ainda quem está parado, debaixo de uma sombra. Páro frente ao mar, fico ainda mais irritado. Entro no supermercado, caminho com extrema petulância. Dirijo-me à empregada de caixa, pago a única coisa que fui buscar e que me fez entrar naquele local odioso. Antes de lhe virar as costas, como se ela fosse igual a uma máquina de tabaco, fulmino-a com um olhar. Para mim, hoje nada presta. Volto para casa, como se tivesse passado muito tempo. Na realidade, nem meia hora passou. Atiro com violência as chaves para a mesa, a madeira acusa as marcas de outros dias assim.



Eu olho-te...
Se sobrancelha ainda franzida e de rosto fechado, sussurro em tom monocórdico;
“É gelado de baunilha...”

E tu...
Que me conheces, por dentro e por fora.

Saberás...
Beijas-me.

...e tudo passa.

terça-feira, 18 de julho de 2006

Sinto




Quem me escuta?
Alguém?
Alguém que me consiga seguir.... alguém?
Tu.
Serás tu capaz?
Queres?
Vem!
Alguém que me consiga ouvir
Estou ali, na música
Basta fechar os olhos
Sentes?
Até ao fim... vá...

Onde Foste?


Música: Devin Townsend - Away

imagem: Marco Neves

terça-feira, 4 de julho de 2006

Quando


Quando falamos acerca do mundo que nos rodeia
Quando nos cercamos de dúvidas
Quando nos envolvemos no escuro manto
Quando… quando sentimos

Inconstâncias… fluxos de sentimentos

Quando nos aterrorizamos com a perda de alguém
Quando um surdo egoísmo nos ataca
Quando as ruas ficam vazias
Quando… quando as horas não existem

Murmúrios… ruídos brandos do nosso oceano

Quando desenvolvemos anticorpos para o mal
Quando arranjamos doenças para o bem
Quando sangramos, degoladas almas a nu
Quando… quando saciamos o corpo de Luz

Vertigens… tentativas de unicidade




A cada passo…
Quando queremos
A cada murro…
Quando amamos
A cada ímpeto…
Quando quase tudo
A cada minuto…
Quando quase nada
A cada parte de mim
Quando tu…

Quando nem as palavras me satisfazem
Quando o tanto é tão maior que o tudo
Quando o sentir-te se torna parte de mim
Quando… quando a inquietude me invade

Relevos… tuas sumptuosas curvas

Quando o Sol se esgueira por entre as nuvens
Quando pintamos paredes pela cidade
Quando dispersamos carinhos por todo o corpo
Quando… quando me deixas sem palavras

Declarações… doces exibicionismos a dois

Quando ao fim do dia um outro começa
Quando o teu brilho me dá vida
Quando ficas a dois centímetros dos meus lábios
Quando… quando partilhamos o mar
Momentos… profusos e eternos



A cada não…
Quando dizes sim
A cada beijo…
Quando dizes não
A cada toque…
Quando nos falta ar
A cada olhar…
Quando paramos
A cada momento…
Quando eu…

Quando a tua pele toca na minha
Quando os teus lábios se colam nos meus
Quando nem o frio me derrota o sorriso
Quando… quando digo que gosto de ti

Sentimentos… minha alma tomada

Quando volta a amanhecer
Quando o resto do mundo acorda
Quando te contemplo, fumando um cigarro
Quando… quando nem sei…

Vidas… dinâmica, energia

Quando ateamos fogos ao luar
Quando roubamos beijos um ao outro
Quando queimamos as roupas
Quando… quando te olho

Gestos… discursos de paixão



A cada escalada…
Quando me exploras
A cada gota de suor…
Quando me consomes
A cada despedida…
Quando a noite morre
A cada momento…
Quando ao teu lado
A cada pulsar…
Quando nós…



imagens: Marco Neves