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quarta-feira, 21 de abril de 2010

contor|nus

Latente.
Veemente. Atravessa-me.
Sem pressa.
Na forma. No modo. Sem teimas.
Disforma. Contorna.

E se esquece...

Latente.
Nas dobras dos dias.
Nos recantos de sudário.
Suados. Os lábios trocados.
Embebidos. Tragados em silêncio.

Aquece...

Latente.
Na sombra. A tua que me torna.
Engelho feliz. Sorridente.
Transbordante. À tua sombra.
Reluzente espaço. Quedado no escuro

Latência resoluta. Palavras medidas.
Nua. Despida. A palavra que é tua.
Faz-te tua. Fez-se dia.
E do dia nasce a noite.
Sendo assim o que almeja a mente.

sábado, 10 de abril de 2010

passo|s

Perdi-me. Na definição que me fazia a marca, na compleição de me fazer perdido entre as ruas. Esqueci-me. Não por temer algumas sombras, naqueles cantos menos simpáticos, nos tantos recantos a que não me dei. Pudesse eu jogar com as horas, os compassos ou os minutos pautados. Talvez não dissesse à boca cheia que me sentia em falta, de cada vez que o solto a passo pela calçada. Libertar o lobo dos passeios e becos. Pequenos delírios entre as irregularidades da cabeça e os devaneios de um empedrado antigo.

Dissipar-me na atmosfera, ar que de nada rarefeito, torna-se extinguível ao afago da brisa. Ofereci-me. Assim, sem grandes complacências nem rumores de desistências a meio gás. Deixaram-me, nem dentro, nem fora, sem que embora não se me descaia o beicinho. Por vezes cola, assim como os cigarros virgens e enxutos, antes de lhes estoirar a inquietude envolta nos lábios. Trazem-me lembranças, coisas da rua. As despidas paredes de sol, alguns errantes, pedintes e maluquinhos. Por vezes é neste estranho manto de mais profundo que vinte mil léguas, que me reencontro nas diabruras de caminhar sozinho.

Dicromático, em cada olhar não repetido. Em cada paixão mal medida, sem grande sentido de profundidade. Coração lasso, acostumado aos gatos que lutam nos telhados, àquela travessa que se julga não minha companheira. Janelas enlutadas, ao lado, ombreiras engelhadas. Casas gastas, rudes portas. Madeiras podres, sem que a pobreza fique à vista da rua. Caminho, prosseguindo adiante, admitindo progressão, procedento ao seguinte.

Decrépitas mensagens em paredes. Safardanas que lá longe se aparentam a sacos de plástico boiando rio abaixo. Conjuras para dentro, porque a rua não se dá a quem odeia solidão. Portas que se abrem e fecham de mansinho, fugaz silhueta de homem que leva escondido um segredo. No andar leva o êxtase, a tusa agora confortada. Com um adeus à amante que lhe colmatou algo mais que apenas um amor proibido. Não há santos nem pecadores. Apenas pessoas, poucas. Dou-me eu a estas andanças sem azimute, guardando para mim o que vejo, tratando de lhes dar uma breve nota.

Paixões assimétricas. São estas sombras translineares, transfigurando o princípio do fim. Arvoredo de profusos braços em flor, que acabam onde começa outro clarão de luz em tom laranja. Dou-me em todo o sentido que a rua me dá. Nenhum. Um cão vadia um pouco mais depressa. É um imitador nato. Fareja de forma constante algo que seja. Olha-me. Olho-o. Ficamos ambos assim. Aguça as orelhas negras. Fareja no ar. Acendo um cigarro. Abana a cauda e prossegue por outra boca de paredes caladas. Pintadas de branco, lívidas à luz da lua, nos espaços onde a luz artificial não chega.

Pior seria o celibato de pensamentos. Não morarem aqui fora. Morrerem ao abrir de uma porta. Sozinhos, pendurados como peúgas foleiras no estendal. Encruzilhadas que me acompanham o virar de esquinas e leves tropeções, quando olho para cima e vejo uma coruja. A única coisa que lhe invejo é aquela brancura e o voo rasante de silêncio.
Silêncio. Como amo esta cidade só para mim, quando se despe de todos e coloca este cetim. Só para mim. E de tanto egoísmo sou feito. Gosto idolátrico, que no sarcasmo queda-me a má fama de espojinho nocturno. Drogado assumido desta desmedida vontade de vaguear. Vadiar somente. Cortar caminhos, rasgar a avenida em sentido contrário. Desrespeitar semáforos. As passadeiras são-me oblíquas. Não querer entender cartazes, mas olhar para um carro de matrícula francesa e ser o melhor exemplo capicua que vi até hoje. Deixar de lado os sinais, porque sou peão, porque no fundo, nada quero ser. Nada, como este vento que insiste. Nada, mas é.

Nenhuma noite acaba sem que antes surja a rainha e os seus cavaleiros. Na voraz fome dos empecilhos, detritos, merdices e calúnias, os homens levam-lhe à boca todo o mal humano. Ruidosa, imponente, fétida devota pelo que se tenta esconder à vista de uns e de outros. É com esta manigância que desconfio da madrugada. Já de si madura, faz de mim um rosto cansado, frio e com olheiras. Em regra geral, o camião do lixo surge sempre a esta hora e acaba por ditar o regresso a casa. É tarde, mesmo que ainda seja de noite.