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terça-feira, 23 de junho de 2009

Os Idiotas

Acorda-se vazio, suspendendo a respiração, o gemido desejoso de se libertar. Trata-se de um querer, coisa tão estranha, por vezes tão distante e encoberta. Desejo como em outras manhãs que acabaram onde a alma começa, a sós. Acordar muito antes do início da alvorada, sem ter os teus olhos em mim, o teu cheiro que impregna o sentido, julguei eu ser a minha vida.

Acorda-se vazio, no limite intransponível do sonho. Declarando-o morto na minha pele, à minha superfície volátil, transpirável e coçada das tantas voltas que dei. Continuo a dar-me a tanto mais que fazer, e sempre muito antes de ter começado a saber viver-me por outros feitios.

Ao acordar-se vazio, guarda a memória passos de um sonho, trajectos inventados, assim como uma passagem bem por cima do abismo, sem que se importe ter na mão um bilhete só de ida. A criação desenvolve-se de tanto a inspirar, por ali está e é tão viva a sua presença. Redescobrem-se sentidos já demais esquecidos, que os somos na verdade, mas aprendemos acima de tudo a negá-los. Efémeros nevoeiros, beijos perdidos e sonhos dentro de outros que não os queremos possuir. Poder jurar que se sente o toque de lábios nos lábios, saber dizer que tudo foi sentido e descrever a forma tão íntima como nos dispersamos por toda a atmosfera.

Acordamos vazios, saídos de uma estação sem escadas nem palcos. Entrelaçamos o olhar com alguém, engole-se em seco quando nos reconhecemos noutros olhos. Sorrindo com o mesmo sorrir, aproximando-se lentamente, cabendo a eternidade de um céptico naquele minuto. Sussurra-nos ao ouvido:

“Vamos, vamos sair aqui porque o caminho ainda é longo para que o façamos a sós”.

Chamam-lhe vida, alguns, os denominados de idiotas, o crentes.

Acordamos vazios, julgamo-nos mortos ainda antes de começar a música. Sim, sempre a mesma melodia que nos toca como um hino persistente à secura da boca. Mesmo antes de descolar a pele da cama, diz-se para dentro:

“Porque estiveste... já não estás... mas porque não estás?”.

Acenamos com a cabeça, olhando para o canto da parede como se alguém ali estivesse esperando isso de nós, quando na verdade sempre esperámos que alguém lá estivesse para isso. Vazios, somos vácuo após subirmos toda a cidade sem nome nem lugares comuns, nenhum rasto senão o nosso corpo espalhado aos poucos pelo chão. Assim se traçam destinos, dizem os idiotas.

Descemos o dia nos olhos tristes da saudade, criando a noite num instante prematuro de uma tarde cansada. Em milhares de anos já vividos, era já tempo de existir uma maior simplicidade de entendermos as horas. Os idiotas, celebrando a noite em tudo tão clara, transparente e sem sombras. Selam-se entre beijos, enamorados, flamejantes e eternos. Caminham os outros, caminham apenas.

Pousando todo o sentido vazio sobre o ventre, deita-se a seu lado uma parte de mim. Macia, quente, clamando que a beije no silêncio dos rostos que falam, artífices desejos desprovidos de palavras e condicionantes das línguas. Repete-se o gesto, peito no peito, com firmeza até apartar a mortalidade de nós.

Mesmo sem existir um tempo possível que nos una para lá do sonho, há uma rua na cidade por onde todos os idiotas passaram. Tomado na consciente vontade que nos impele a percorrê-la em cada passo, dei pela sua voz já quase diluída pela distância, a sua voz que fala ao coração ouvi dizer-me:

“Para saberes o meu nome basta virares todas as placas das ruas ao contrário”.

Vazio maior senti em mim, e menor o ar para viver. Nesta cidade sem nomes, sem lugares que saiba o porquê de existirem, quem já lá esteve e quem de lá partiu. Nesta cidade onde nada mais existe para lá das paredes, desvanece qualquer coisa transcendente ao corpo, à alma que apenas deseja criar e prosseguir. Sentindo a pele arder como papel, despindo-se da forma, da cor e textura, desmarcando-se de qualquer contexto para que foi criado. Descendo pela calçada como um louco, um idiota perdido, sem ter uma única palavra para o que mata por dentro. Caminha-se apenas, caminha-se apenas.

Oferece-se um punhado de tempo para solucionar a dúvida alheia ao próprio pulsar do coração. Por vezes, escolhem-se caminhos porque os sentimos, quando para trás tantos ficaram por apenas os termos querido. Tão magnânima como nefasta, tão grande como acordar vazio, são estas as estreitas linhas com que se tecem os designios da vida.
O reencontro um pouco mais à frente, só mais uns metros quando na verdade parecia interminável. Sem alguma pretensão, ambos os caminhos tinham o mesmo fim, unos. Naquela sua voz que chama o coração da alma à boca, mostrando bem mais que o seu sorriso, desvendou este meu.

Acordei a sós,como sempre acordamos todos os dias. É um plural que me soa estranho, uma singularidade laminada a mil deformações ao espelho. Tão certo como não saber o teu nome, é sentir o beijo colado na boca. O sonho é uma perseverante vontade de um típico idiota, num mundo ainda antes do início. Ver-te nascer entre as minhas mãos, amparar-te nos meus braços e sentir-te partir à primeira luz.

Prometi esperar-te até à minha decadência, até à demência dos que não se acham idiotas. Até ao acordar e não me sentir vazio, mas ao invés, farto.