Tenho saudades de uma parte de mim. Daquela parte que gostava de ficar à chuva. Daquele lado negro brilhante, fosco quando alguém passava.
Gostava da sensação de brincar às escondidas e nunca ser descoberto. Ficava ali o resto da noite, até todos desistirem e voltarem para casa.
Lembro-me tão bem daqueles dias em que era tão feliz na minha pacata solidão. Sair de casa e sentir-me livre. Único. Feliz.
Aprende-se a gostar. Aprende-se a querer mais que gostar. Deixei de ser único neste mundinho. É como aqueles pés dentro da nossa cama. Aquele lado direito sempre ocupado… e quando não está, estranha-se.
Aprende-se demasiado de uma só vez. Ao longo de um certo tempo, digere-se pouco a pouco. O pior dos erros, pensar que não se tem garganta, que nos falta saliva para engolir. Pensar que se morre ali, naquele triste acto de viver.
Não. Há muita garganta.
Muita voz que ainda corre por aqueles caminhos que me viram crescer. Naqueles caminhos em que combati os meus primeiros demónios. Tanto que hoje sou incapaz de largar a noite. Foi entre aquelas árvores que jurei morte ao pior que havia em mim. Foi ali que enterrei uma caixa de recordações que nunca irei procurar. Não me esqueci, mas perdi-me um pouco no caminho de volta.
As coisas de que me lembro. A passagem do tempo que amansou o pêlo. Fui terrorista silencioso, o puto com as cartas nas rodas da bicicleta. Sou agora, o mesmo que compreende tanto gesto que tinha, tanto pensamento que tive. Agora sim, concordo que quase tudo segue uma ordem natural.
E quando descobri a morte? Os enterros das borboletas, entre duas caricas de refrigerante. A curiosidade que se apoderou de mim. A mesma sensação de quando enfrentava o escuro. E passo a passo fui ganhando coragem e força. Felizmente apenas no escuro. Lembrei-me de outra coisa qualquer, mais terrena.
Nestes momentos que nem sei bem como os classificar. Este aperto de tanto sentir o mundo. Tanto que enjoa. Desejo apenas continuar a sentir-me vivo como até hoje. Que os sorrisos me saibam da mesma forma. Que aquele perfume seja sempre assim. Mesmo que tenha trocado, já nem sei quando, os soldados de plástico pela caneta. Aquela bicicleta que ainda existe, por um bilhete que me leva até onde me sinto livre.
E isto custa-me tanto escrever, muito. Porque foi difícil chegar até aqui e sentir-me bem, feliz. Muita vez não acreditei na garganta, na própria voz de querer, no que nos faz estar aqui. Sermos uma razão, um motivo, um significado. O grito de guerra, esta que se trava, sem ser a guerra de despojos.
Que a fé nunca me abandone, mesmo que o sorriso desapareça. Que nunca confunda a noite com trevas. Que nunca deixe de existir uma caneta para mim… ou então o único motivo porque o faço… porque sinto, assim… e só assim.