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quinta-feira, 29 de julho de 2010

vasqueiros

Se não fôssemos amigos, seria mais simples de queimar o mundo. Sorrir a cada manhã, entre os resquícios de névoa e os raios de sol. Nas noites mal dormidas, putas, suadas a sós na insónia. De olhos fixos em coisa nenhuma, e a nenhuma coisa regressar. Na improbabilidade de não nos conhecermos, fartos de poemas e boas intenções, e em cada partida apenas descolarmos a pele um do outro.

Caso fôssemos uns desconhecidos, nunca beberíamos juntos, não haveria troca de mágoas ou choros. A nossa presença seria igual à ausência dos outros, aqueles que roubam pedacinhos de nós, e nós nos deixam na garganta, a sós. Deitar fora a pastilha mais que mascada, sem que se oiça “Olha como vens tu. Que te fizeram?”. Soltar um gesto, e tão simples que é, no seu toque trazer-nos a leveza que não temos.

Se não fosse teu amigo, talvez te riscasse toda a pele, enchesse todos os vazios e despejasse a seguir. Se fumássemos cigarros, uns atrás de outros, de cabelos soltos, sem que o infinito nos impressionasse, talvez houvesse um momento em que a minha mão roubasse a tua. Um aperto no peito, um sussurro amaldiçoando este cheiro a tesão.

Se não me soubesses chamar à razão, talvez o teu colo fosse um ventre de desejo, um poço sem fundo, uma rota de ir e vir. Ir e vir, uma e outra vez. Tudo isto não fosse mais que um elo, onde a nossa fraqueza veste-se nas outras peles, entre outras camas, onde acabamos sempre por acordar sozinhos. Sozinhos de uma cama cheia de vazios, amarrotados por dentro e por fora.

Se não estivesses presente sempre que falho, dando por mim num sentido errado, descompensando a luz, renegando-me um pouco para o lado mais negro, talvez me agarrasses com força, matando-me no peito, com fervor, nesta maldita veia, esta pedra de sangue que não derrete. Fosse o grito uma forma de libertar, fossem as entranhas vontades escondidas, fôssemos nós desconhecidos, ausentes do universo de cada qual, tornar-se-ia o desassossego em imperativo comum.

E talvez nem nos importássemos demasiado com o que temos para dizer um ao outro, porque isso não contaria para nada. Insignificante seria, sem mais ninguém para aturar os nossos maus regressos do mar. Sem sabermos do bem, porque nos despedaçamos a cada projéctil alheio. Nada seria infrutífero e, provavelmente, nunca haveria agradecimentos de parte a parte. Dividir-se o mesmo copo com um estilhaço de gin, uma pastilha elástica, deixarmos as pontas dos cigarros quando o outro já não tem.

Caso não houvesse lealdade à espinha dorsal, talvez snifasse coca onde a tua termina. São todos os desassossegos da alma que nos formam. São todos os sobressaltos da alma que nos motivam a carcaça a levantar-se de novo. São todos os planos gorados, as pessoas que nos falam sem ser nos olhos. Assim como ouvir dizer de outra boca, “A tua dor é tão bela, quando te escreves numa sombra que brilha, com uma luz que não se vê”. É, acho que somos uns estúpidos.

Se a tua boca não me fosse familiar, porventura que desceria pelo meu corpo, até aqui, onde tudo se liberta. Matar-me-ias a cada beijo, tornando o meu coração em pó, especiaria vendida ao preço dos olhos da cara. Trocar-se uma cegueira por outra. Já não existe quem queira. Poucos restam os que sabem. Coragem dispersa por entre gastas palavras, pintadas com a pressa de quem pensa engolir-nos num trago.

Numa outra circunstância, sem sermos quem somos, talvez fôssemos deuses, absolutos, mas não amigos. Nunca amigos. Nunca.

10 comentários:

retiro o que disse... disse...

Se fossemos outros não seriamos nós.
E ainda assim, do que vale sermos nós próprios?

A ti deve valer-te de tudo, mas ganhas alguma coisa com isso?
Eu não...

A Loira disse...

Bela homenagem à amizade...

Dark angel disse...

"Nada seria infrutífero e, provavelmente, nunca haveria agradecimentos de parte a parte."

Os agradecimentos anulam-se, quando são de parte a parte. Fica tudo o resto, ainda que silenciado e perpetuado.

Luiza Maciel Nogueira disse...

Lindo texto dos quase amigos, gostei principalmente do "É, acho que somos uns estúpidos."

:)

beijos

Estranha pessoa esta disse...

... since 1979. Não fosse a ardósia ser estúpida e o giz estar 'caro', e faltasse a coragem para snifar todas as vértebras até ao fim. Trago. -Te. Trago. -Nos.
Há amizades assim. Ainda as há. E almas também. Hoje não trouxe cigarros.

Anónimo disse...

Se deixasses de ser quem és, deixariam te fazer sentido as palavras, os actos que te têm construído e povoado até hoje... Deixaria de fazer sentido o tempo... Ainda que, por momentos, tal, pudesse fazer sentido, na tua mente...

Mais uma vez, excedeste-te ;).

Beijinho

MissBlueBuble disse...

Mais um texto de se lhe tirar o chapéu! Parabéns :)
Porque não uma combinação de texto e fotografia?

Táxi Pluvioso disse...

Sempre é possível ser-se Deus e amigo, só os deuses gregos é que eram inimigos. bfds

Suricat disse...

Bonito :)

Estranha pessoa esta disse...

Trouxe cigarros.