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terça-feira, 13 de fevereiro de 2007

Fome

Ela não sabia que a perseguia, durante todo o dia. Quase como sagrada, a sua rotina variava apenas pelo meu desempenho em tentar nunca perdê-la de vista. Dissimulado entre a cidade diurna, corria atrás do seu inebriante cheiro. Provocava-me a sensação de predador. O controlo que tinha em todos os seus passos.

Ao princípio, unicamente concentrado em saber tudo o que fazia, tornei-me obcecado conforme me diluía mais na sua imagem. O começo de tudo, perdido num dia qualquer, num cruzar vulgar, na partilha do mesmo passeio, em sentido contrário.

Era um monstro que alimentava aos poucos no meu interior. Tendo a consciência que o devaneio me tinha tomado, o passo era demasiado grande para conseguir apartar todos aqueles pensamentos levianos. O impulso chamava-me.

Despia-a de cada vez que parava diante das grandes vitrinas das lojas. Aquelas pernas torneadas gozavam-me por não as tocar. Falavam-me, a cada passo que davam.

Parava no mesmo café, na sua mesa habitual. O batom que colava na chávena de café. Tudo em si era importante para mim, mesmo que o seu quotidiano me parecesse semelhante a uma ordem suprema de acção sintética.

Salivava por dentro, espiando os seus passos em casa. O recanto escuro da rua era o meu aliado. Abrigado no meio dos contentores do lixo, alimentava-me do sonho que via. Durante noites a fio, e mais noites corria-me em suores e tremores.

Saturei-me. Desconfiei do óbvio que toda ela indicava ter-se tornado. Demasiado fácil segui-la, parecia facilitar-me a vida. Um certo incómodo de tom alerta, já me sentava na mesa ao lado da sua. Senti-me enganado. Saberia ela desde o início que a seguia há tempos?

Constatei que, na verdade, o seu perfume me enjoava. Sem querer, e já longe da minha veia doentia e anormal, o seu hábito ritualista tornara-se o meu também. Detestava admitir ela se entranhara em mim, até aos ossos. Nos meus movimentos aprisionados, condicionados aos seus, era asfixia lenta. Na minha pele, agora, mesmo que não quisesse, encontrava-a em todo o lado.

Cruzarmo-nos já era demasiado para mim. Desmoralizava-me mais, a cada dia seguinte, abatia mais forte sobre a minha cabeça, a violenta tempestade da sua imagem. Ela seguia-me. Seguia-me para que voltasse a segui-la.

A vítima acabava por escolher o seu próprio predador. O controlo não era de quem comandava. Quem controlava, não era que perseguia. Quem perseguia, era a própria presa, eu. A teia de ambos, em emaranhado e descompensado jogo viciado. O beijo, letal, vitimava a fome de posse.
Segue-me, segue-me mais de perto. Excita-me sentir que os seus olhos a percorrer cada parte minha. Todo o meu corpo trespassado, tornando-me fonte de desejo em cada olhar. Facilitei-lhe um pouco, calcorreando sempre os mesmos caminhos, repetindo os hábitos.

Em casa, despia-me bem devagar, estrategicamente na janela da sala. Dançava sozinha, como possessa, só para ele. Nua, louca pelo êxtase de saber que me espiava. Quente, mais quente que a própria palavra. Ao rubro, sentia-me arder, por dentro, por fora. Imaginava-o tenso, rijo de ganas. Entrar e sair, da fria intempérie no exterior.

Deitava-me na cama vazia, envolta apenas nos húmidos desejos. Queria vê-lo entrar, todo, de uma só vez, por aquela janela.

Esperava-o a cada noite, e sem resistir, espreitei. No escuro da casa, mirando desde a janela inviolada, vi que já lá não estava, apenas o lixo doméstico.

Frustrada por não me alimentar mais que o desejo, a fantasia de me tomar de assalto. Sentia-me violada pela decepção. Furiosa, acusei-o de amadorismo.

Resolvi evidenciar-me em tiques neuróticos. Queria atacá-lo, morder-lhe sobre as calças, despi-lo com a minha boca, à força. Queria rasgar-lhe a camisa, bater-lhe cada vez que respirasse. Ensinar-lhe o que deve fazer. Vou, na minha crueza, transformar-me por inteiro num acto, comê-lo.

A sede em doença, carne em maior fulgor de flagelo. A cegueira de consumir a frustração, desejava ser penetrada, até ao fundo, pelo explorador istmo do seu desejo.
Fugia-lhe por entre a multidão. Corria, corria como um louco. Faltava-me o ar, só de imaginar como seria cruzar-me com ela, vezes sem conta. Temia-a pela hostilidade da sua presença.

Tentei emendar o sentido da minha existência, em desespero de causa. Procurei novos caminhos, diferentes de qualquer outro. O meu desespero por não conseguir arrancá-la da pele, era um grito escuro e abafado dentro de mim. As minhas emoções quase apagadas, esquecidas numa recôndita sombra da minha mente. Enlevado nas emoções maiores, estava envolvido numa trama, em papel desesperado, em fuga.

Rápido, desviava-me das clareiras humanas. Escondido na confusão, tentava dissolver-me entre ruelas e esquinas. Escamoteado, sempre engendrando um plano de fuga, entre um pensamento e outro, estava em aflito momento. O pior de mim em evidência, o medo paralisava-me. Confuso, porque quanto mais me sentia cercado, mas a adrenalina me tomava.
Vou caçar-te, comer cada parte de ti. Vais ajoelhar, pedir pela trela da sentença. Vou seguir para que me sigas. Vem, segue a tua dona.
Determinado a terminar com o papel que me tinha sido destinado, pensei. Senti. Olhei-me no espelho, após um duche de gelo. Nu, olhos nos olhos, desafiando o destino de fracassar e nota de medo.

Vou atacá-la, sem contemplações. Sim, esta mesma noite. Desafiar a minha capacidade de escalar muros e janelas. Termine como terminar, maior prisão que viver somente em mim não existe.

Desvio quem se atravessa à minha frente. Olhando para o alcatrão, húmido, lambendo-o com os meus olhos. Como se guardasse o sabor da sua pele. Acendo um cigarro que arde em vício veloz. Cinza maior, nervosismo casual. Será apenas o frio que se alia à minha vontade.

Tenho esta vontade, na ponta da minha língua em cada pétala sua. Engolir cada gota seiva que lhe escorre pelo ombro. Correr no seu labirinto, nos nós e anéis que traga na madeira. Controlar a sua corrente, em barragem, para a água que tanto quer seguir o seu rumo. Fora, para fora de mim, expelir-me em tantas ou mais gotas que me escorram pelo rosto.
Ele virá. Tenho a certeza que virá, seguro de si, da viril certeza, bem no meio das suas pernas. Neutralizá-lo aqui, bem no meio das minhas. Gemendo horrores que são prazeres, embuste que é desgaste forçoso dos corpos. Comê-lo, sendo comida. Tenho esta fome toda para dar, e tanta mais, para oferecer.

Faminta, e as horas que teimam em passar neste odioso compasso de espera. Fico desnorteada por o fundo da rua ainda se encontrar vazio. Quase que não me aguento, em agonia de não me querer sentir, para não explodir. Desligo a luz…
- Tu vens…

- Eu subo

- Tu entras…

- Eu deslizo

- Tu comes

- Eu gozo

- Tu mandas

- Eu repito

- Não pares!

7 comentários:

Anónimo disse...

O erotismo introduz na vida um elemento de prazer e de festa, também de desordem...

Lady disse...

Mhmmm... tens jeito para histórias!!!! E esta está fantástica!!! Adorei... um beijinho grande

Anónimo disse...

fiquei exausta! brilhante jogo =D

tens aí umas metáforas marotas eheh gosto muito!

=)*

Anónimo disse...

uau!..cum caneco!já vi que tenho serão;vou ter que ler o resto, mas olha..fiquei sem palavras..

Anónimo disse...

soberbo!..continuei a ler por aqui fora, mas é bom demais pra uma noite só.e já sei porque não tinha dado atenção ao blog; é que as letras são pequeninas e vermelhas, o que dificulta a leitura e a posição quando me curvo,torna-se desagradável.bem, se não mudares,vou passar a sofrer das costas.
há sofrimentos que valem bem a pena.um abração

A. disse...

Praying Mantis.











...hoje acredito /apenas/ no que vivi.







Beijos____________M.______.

A Minha Essência disse...

Simplesmente delicioso a interação dos dois diálogos. Mais uma vez fui até aos teus pensamentos. ;)

Beijo