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quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Rosé

Chamar-lhe-ia globalização de males comuns, se não fosse esta paixão cega que nem classificar sou capaz. Sendo apto, ou pelo menos, apontar-lhe um foco de luz para que não se pareça tão mortiça como o próprio autor, uma constante transparência sem um mal entendido entre uma afirmação e outra. Que seja suspeito de crimes maiores de me obrigar a passear pelas ruas na primeira noite de chuva, sapateando silenciosamente, e talvez seja apenas à mente que minto num tanto de sabor a saudade.
É uma contrariedade de perfume brando, mãos suaves e corpo pendido no lábio que insinua beicinho. Apetece-me um doce, com chocolate que não se tenha de mastigar, esperar por um punhado de tempo até que me apresentem a conta. No final até fumo numa pequena saída à rua, já que o hábito agora é fazê-lo lá fora.

- Não, não não… não… - Disse eu enquanto a minha cabeça acenava e um contentamento apoderava-se das minhas pernas. E pronto, já que aqui estou, bebo mais alguma coisa, e hoje que me sinto com tanta secura até me fará encalhar em qualquer pedrinha no caminho de volta, se algo do género ainda existir no fim da noite.

Nem assim aguentei mais que duas horas. Fartei-me, azedei pelo que ingeri, queimei por me ter esquecido. Pisei sem querer matar devagar esta fraqueza pelas luzes frias do café. Nem mesmo a salvaguarda de viver entre três pares de mamas se coaduna com esta fraqueza a que muitos chamam de forma leviana de encarar os factos. Apenas pensava que a vida se subjugava a outros valores menos resplandecentes, e que talvez o preço de cada garrafa fosse o maior dos exageros a que estes mortais se atrevessem.

Enganado estava eu e nem grande mal via nisso. Tão enganado que já andava, tão pouco mais enganado agora, sem nunca me ter dado para acordar na cama errada, apenas deitar-me... apenas deitar-me.

Acordar envolto naqueles hálitos partilhados, no engelho dos corpos transpirados de demasias e excessos. O infernal buraco no estômago de quem não ingere nada há milhares e milhares de anos. Nada tem de errado acordar do avesso, com mais seis pernas e outras tantas mãos. São leves, macias, pequenas travessuras enroscadas como gatinhas. Como gosto deste lastro a batom que me impregna a boca tão beijada e calada na surdez e cegueira da noite.

E dizia-me eu enganado como um saloio caído na confusão da cidade. Oh, como a doçura da travessura me faz entender tanta coisa. Encolho os ombros, reconforto o pescoço do frio da manhã e desapareço por entre uma rua.

Poderia chamar-lhe uma confissão de optimista sem pretensões a grandes actos heróicos. Entregue ao desplante de me conservar entre mulheres rígidas e frias, vendia-me à evidência de três garrafas importadas, duas conspirações de balcão, injúrias já em tom baixinho por entre os sobretudos que se vestem antes de sair pela porta dos fundos.

- Não, não, não e não – Dizia-me a boca que apenas desejava o contrário, morrer entre aqueles seios firmes e perfumados. Já que se é mortal, que seja ao menos escolhido o leito, embebido na colónia importada e oferecida por outros, beijando-me opiácios lábios degustados a tanto, mas tanto prazer sem fundo.

O sorriso surge com a mistura alcoolizante dentro do corpo. O latim gasta-se-me com facilidade nas veladas tertúlias de levar para a cama em festas de protocolo. No fim, pedem-me que lhes dê por trás para que os oficiais não desconfiem dos castos valores intocáveis. Atributos semi-religiosos confinados a supostas clausuras e esperas. A soberba promíscua, as sumptuosas preciosidades, sedas e gemas acabam à porta da quinta divisão virada para nascente, mesmo por cima do piano que jaz na sala. A rudeza da sua carência satisfeita, desaparece por entre o angustiante jogo de luz e sombras. É uma imagem que só se me dilui por entre o odor do cachimbo e a pesada névoa de um passeio sem sentido.

Estala-me a vontade de cair de novo numa cama sem redoma, de enxutas carnes, frágeis respirares sem nunca a tosse parecer-me a um escarro de vinho francês. Talvez porque saiba que de manhã, aquelas pepitas rosadas, espetadas na exuberante forma que a Natureza as fez, de as apertar com o vigor sensato de alguém tão comedido quanto eu. Enrolar-me e estender-me pelos cabelos, sentir quente e frio nos seus corpos baratos quando este desejo me sai tão caro da pele. Cada mão macia que me mexe, cada voz que me trespassa este coração tão mole, vale cada centavo deste tão vulgar declínio dos tempos modernos.

Enfim, hoje como é Domingo decido-me a passear pelo parque. Ser-se visto, comentado e invejado é um pressuposto de mais valia, um certificado de vida. Eu que nem me comovo demasiado com os azares, toca-me imenso aquelas almas que nem sabem ao que sabe um chocolate derretido numa boca que fazemos nossa. A felicidade compra-se, a solidão adquirida.

12 comentários:

Anónimo disse...

Pois é pois é...Marco Neves.....
o quer a vida dita e o quanto mais e foge mais se aproxima..... pois é......

RC disse...

Hoje é quinta, pa!

Xi.

Anónimo disse...

Vagueando por entre, uma certa vivência desprendida,volátil e algo cínica…conceitos, preconceitos, e paixões, o autor tem o dom de nos arrebatar ao projectar-se desta maneira no papel.

Um texto para degustar...

Niva

Bé David disse...

Boémio
Insensato
Inconsequentemente jovial
Saltita por entre uma decadência fresca e solta
E assim fascina.
É uma pena escorreita em tinta marcada pelo fogo e o desejo
Pela indiferença e pelo despudor
Fantástico porque dúbio
E no fundo…
Quente e doce…como o vinho!

Quantas mais páginas consegues tu abrir na nossa imaginação? :)

Beijos |s|a|b|o|r|e|a|d|o|s|**

Sorrisos em Alta disse...

E os três pares de mamas são de uma única pessoa????

Blueminerva disse...

Será o Rosé o segredo de uma escrita libidinosa e efervescente?


beijocas

Post-It disse...

Come chocolates à chuva, rapaz... que é o que nos fica depois de usarmos os dias.

gui castro felga disse...

...não há mais? queres que te envie uma garrafa para despertar a imaginação? bom som, desert-like.

Sorrisos em Alta disse...

Espero que já estejas recomposto e mais dono e confiante em ti mesmo.

É que ninguém se vende só por três garrafas!

;o)

Abraço

Lady disse...

Pois o vinho tem cá dos seus efeitos...
Tens um desafio no meu cantinho...
se quiseres aceita-lo

Jinhos e bom domingo

R. disse...

Já não vinha aqui há algum tempo.Tudo ainda melhor do que já é.

Bjs

Mαğΐα disse...

Tão pouco o que os outros sabem nós sabemos.
Tão pouco o que sabemos se fará sabido aos outros.
Como chocolate amargo que pelo canto da boca tão pouco deixa antever o arrepio que se sente dentro, na lingua!

Lampada Rosé, vou embriagada de mais-valias :)