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segunda-feira, 25 de agosto de 2008

Transitário


O dia começava de forma lenta, e pela cadência do semáforo, não havia grandes motivos para me sentir melhor. De uma pausa demorada e repleta em morte angustiante de sono, pensava apenas em como seria bom chegar dez minutos antes do mesmo tempo que tinha feito ontem.

Arrasto-me pelo asfalto entre as cinco faixas entupidas, hipertensas e desesperadamente eternas. A vida caótica do comum que se torna cada qual dentro do seu mundo de lata, sobre rodas, no habitáculo climatizado em sintonia com o cinzentismo da paisagem.

Vou, arranco, acelero um pouco, embraiando o silêncio, o pensamento, a vida refém de mim. O tempo esgota-se, o sol sufoca e o aperto do cerco no cruzamento condensa monóxidos, suores e desesperos. E nada mais me resta, e pouco importa, nada mais que chegar cinco minutos antes de ontem, arranjar um lugar e fugir para o escritório.

Como me reencontro com quem julgava ser, sem ter de esperar a mesma eternidade que separa a Céu do Inferno. Convenço-me que o grito não passará para o exterior do habitáculo de vidros escurecidos e cercados por um friso de plástico cromado.

Bem fundo, com custos adicionais à minha saúde, corpo lato, mente flata, dormente de qualquer sentido que me tire desta demência que aceitei desde o primeiro dia.

Cerca-me uma vontade de me atravessar na fila, barrar o caminho já de si barrado. Criar um enclave simplesmente por querer. Morder os lábios e quebrar ar rotina, num assalto de memórias leves de um êxodo das próprias vontades. Tudo torna-se num único momento em que eu escolhi e tomei a decisão, justificando-me apenas com um "porque sim, porque quero, porque posso".

E aqui entre alcatrão, plástico e metal, tudo se desvanece em segundos, como aguarela desmaiando na sarjeta sedenta de cor. E por ter reagido três segundos mais tarde ao semáforo, ainda fico sujeito a buzinas, mãos no ar e umas quantas considerações menos amigáveis.

Embraio, acelero, travo, embraio, ponto morto. Morto estou e nem sabia, com o sol mesmo do meu lado, com a vontade a viver fora de mim. Falando num plural que apenas faz parte de mim, sem lugar para os outros, sem entrar pelo ambiente condicionado e climatizado. Sem o odor do plástico coreano, ou fragrâncias como post-it no retrovisor. Todos seguimos pelo mesmo caminho e nada nos liga.




image by LampadaMervelha

13 comentários:

Blueminerva disse...

Que bom, que bom, que bom encontrar novas palavras por aqui!

Ainda que depressivo, ou talvez por ser depressivo, é fascinante como os teus vocábulos se assemelham a notas de piano... notas religiosamente ordenadas numa pauta. Bravo!


Beijos muitos e um grande abraço

Bé David disse...

Às vezes somos assim...
peões com rodas
numa máquina infernal de gestos repetidos
cansativos...

Excelente quadro de tantos de nós e por outro lado... tanto de nós, mesmo em outras vidas...afinal quantas vezes nos perdemos no nosso próprio engarrafamento interior...?

|Amo|te| poeta meu...
Bem vindo de volta às letras...
mesmo atrasando
chegas sempre a tempo! ;)*

Anónimo disse...

Contemplar realidades transformando-as num excelente exercício literário...Bravo!

Sorrisos em Alta disse...

É fascinante como o parque automóvel do Nepal é parecido com o nosso....
;o)

BEM-VINDO de volta!!!

Abraço

Cláudia Sampaio disse...

Que Sufi afinal? Estás a falar dos seguidores da filosofia Sufi? Vi uma dança dos Dervishes, mas não deu para trazer um :)

Cláudia Sampaio disse...

Que Sufi afinal? Estás a falar dos seguidores da filosofia Sufi? Vi uma dança dos Dervishes, mas não deu para trazer um :)

Jo disse...

Morto estou e nem sabia

O que te vale é que reencarnas em palavras numa cada vez mais perfeita cadência.

beijo*

Anónimo disse...

Olá!

Como sempre que aqui venho, encontro pensamentos e exercicios literários de bom gosto como este.
E digo de bom gosto, porque vai ao encontro do meu e isso só pode ser bom :)
Ao ler-te dei por mim, numa qualquer manhã, rumo ao trabalho ou do teu lado observando todas essas provocativas e inquietações.
É quase um movimento niilista passivo como diria Nietzsche.
Morto na rotina, com tanta vida a pulsar na busca da liberdade idilica. Ainda bem que tudo nos podem prender menos o pensamento.

Um beijo

Manefta

Eme disse...

O pensamento viaja-te no quotidiano. Isto fez-me nervos, raios, até rangi os dentes, o trânsito, as buzinas, a segunda-feira, os dias recentes com noites a chegar.. e toda a gente vivendo como se tudo fosse eterno.

Sorrisos em Alta disse...

Os carros eu até entendia... agora haver um Termómetro do Amor no Nepal é muito à frente!!
Hu Hu!

Maria Brito disse...

Ora bem... nao sei se desta vez me fico com a foto ou com o texto. Vou pensar depois digo-te!

Sorrisos em Alta disse...

Re-bem-vindo!

Fico a aguardar post novo.

Até lá, vou fumar mais uma. Perdão, mais um... cof, cof

Abraço

Post-It disse...

Em fila, pois... somos.
Mais um mexcelente texto/reflexão.