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terça-feira, 22 de abril de 2008

|F|umando nas |E|scadas

Pede o tempo que fique sentado nos degraus à porta, espreitando o dia que me morre para lá da floresta. O odor silvestre faz-se sentir, misturando-se no térreo vislumbre de quem se espera e chega.
Por entre os similares hábitos da espera, cai de mansinho aquela névoa que humedece todos os recantos.
Está frio.
Por vezes saio para a rua quando o escuro toma o lugar do dia, apenas para contemplar as sombras disformes por entre a trémula luz da lareira.
Aqui os serões não são mais que um desfiar de tempo, não são menos que vida serena.
A noite fala, o dia consente.
E sabe-se lá a razão porque escrevi. Saiu-me. Chamar-lhe-ia uma breve memória por entre outros corpos que já dormem. Não o faço porque estou ao relento, ainda olhando lá para dentro, por agora.
Ainda que lesta e fria, a noite torna-se um pouco mais amiga e convidativa no decorrer dos dias. Descongelam vontades, relembramos sonhos já quase abandonados. Ocorre-me com alguma frequência ter assaltos de momentos agradáveis e que, sempre que viajo até lá, trazem a luz, o odor, a pele da altura. Como me poderei esquecer do amargo sabor dos bancos de napa? Como poderei esquecer o sabor de uma língua com vodka barata? O cheiro do areal numa madrugada. O sofrimento em sede e fome até ao primeiro beijo consumado. O estojo com as doze canetas de feltro. O primeiro engate a sós na discoteca. Os primeiros momentos, os outros repetidos, os últimos acenos, as despedidas com sorrisos num “até breve” mesmo sabendo que seria para sempre. Alguém mais se lembra daquela miúda que me perguntou o nome, beijou-me, sorriu e depois desapareceu por entre a multidão? E como sabe bem que assim perdure, desaparecendo por entre aquele mar de gente.
Chamar-lhe-ia uma breve memória por entre a repetição das mesmas. O corpo cansa-se, a memória atraiçoa, faz-me parecer demasiado volátil. São vinte e nove anos e tenho tanta sede como no primeiro dia que tive a consciência que viver é algo assim tão estranho, curioso e fascinante, assim como quando se prova vinho à terceira vez. Ainda só comecei ontem, e a noção que tenho é que isto vai ser rápido, muito rápido. Assusta-me poder adormecer pelo caminho, deixar de ter a minha noção de mortalidade. Curioso, acontece-me o mesmo ao fim de uma garrafa de vinho.
Pede o tempo que fique mais um pouco aqui sentado nos degraus. Eu fico, porque quero ficar.
Quem chegou, trouxe nas mãos amoras de uma acidez que desperta os sentidos. Salivo, sei lá, salivo pelo beijo que me dá, pelas sensações que desplotam em mim. Não serei o ideal de bom rapaz, mas estas coisas estimulam-me, e sim, fico excitado só de imaginar que se excita por saber que lembrar-me-ei do seu cheiro, dos seus dedos por mim, do modo eterno que me for permitido.
Gosto de escadas, de esperar alguém numa escadaria ou de nada fazer nelas. Apenas ser alguém sentado num degrau. E guardo quem sou em escadas que já construí como império. Por entre os similares hábitos da espera, o engenho de me reescrever à mesma luz, nos traços da cor predominante do meu sentir. Morre-me a boca na última palavra vociferada e transtornada, dita a um beco mudo, pensava eu que fosse mulher. Pensava eu ser melhor agora, ao contrário, pareço-me e fico pela intenção.
Nunca tive o hábito de beber sozinho, apesar de nunca me ter habituado a beber apenas um copo. Nunca fui comedido na paixão, também nunca cheguei a desintoxicar-me por completo da loucura de sentir o coração explodir. Talvez aprenda a falar numa linguagem mais próxima dos outros, um pouco mais à mão do coração. Ficar mais perto das mãos que me querem, destes gostos únicos e transmissíveis, num beijo trocado com sabor a noite de Primavera.
Clamamos por lágrimas, choramos pelas chagas dos outros, pelas nossas, nas nossas, das nossas. Emprestadas, proclamadas como sentenças, criam-se vazios por entre os dias, talhões de nada que apenas nos ocupam espaço. Tendo o dia dois momentos tão diferentes, sentenciamos as memórias e passamos o resto do dia a esquecer o mesmo. À noite, apaguem as luzes o mais depressa que puderem, durmam e esqueçam. Caso sonhem, não se esforcem na tentativa de relembrar o que foi. Cuidado, não partam a cabeça em falsas lições empíricas. Leiam alguns autores consagrados mas não ousem na aventura de viver um pouco para além da sombra.
Encolho os ombros, dou por mim a pensar alto, aqui, sentado à porta de uma casa que nem sei de quem é. Os corpos continuam no descanso, entre as sombras disformes e a luz trémula de uma lareira que já pede por mais lenha.
Vou só ficar mais um pouco, necessito apenas do tempo de mais um cigarro em ritmo descendente para o sonho. Por vezes tento encontrar um deserto de ideias, mas acabo sempre por encontrar o oásis. É bom estar aqui, mesmo que amanhã parta. Foi bom estar e mais estarei, não sei se aqui ou mais adiante.
Agora sim concedo seis minutos para um cigarro, segurando o queixo com uma das mãos apoiadas na perna. Isto é poder. Chamar-lhe-ei outro cigarro qualquer, enquanto outros corpos descansam entre as sombras e as luzes da minha memória.

21 comentários:

Bé David disse...

Entre as histórias
.
.
.
Entre as memórias
.
.
.
Como um desfiar de cor, luz e sons...
.
.
.
Assim as (re)vejo

Por sobre o teu ombro

Repartindo o cigarro que demora uma vida...
.
.
.
Não, não te esqueças nunca...


De quem és!

:)

Assim |Te| amo...

farfalla disse...

Gostei ;)

Post-It disse...

:))
E o que o rasto deu...
;)

Lady disse...

Uma viagem interior... e divagações que a noite pede...

Jinhos

un dress disse...

ficar nas escadas:

sombra memória

o que veio o que é o que

será

tudo ali giz no

chão

do alto do lado do sempre

insónia

jogo de acaso

pacifiicado a

nu

na

palma

a ber ta

da mão ~




beijO

Maria Ostra disse...

Salivemos, então.
:))

Blueminerva disse...

"É bom estar aqui, mesmo que amanhã parta."

É tão bom estar no teu espaço, meu amigo... porque as tuas palavras são têm a ternura dos colos.

Um abraço

RC disse...

Dás-me lume?

RC disse...

Dás-me lume?

Eme disse...

Crónica das Memórias de um L.M

Tu já falas a linguagem do coração. até a da alma.

Ousa. Ousa viver para além da sombra ainda que na lembrança de um sonho.

eudesaltosaltos disse...

às vezes passo cá e nao comento logo. custa-me faze-lo logo, nao me dá tp suficiente para discernir e saborear as tuas palavras...

desafio-me?? é o q tnh feito. pode n transparecer, mas tnh-o feito. tv erradamente. tv nao. provavelmente.

big kiss

Sorrisos em Alta disse...

Lindo menino!

A cumprir a legislação mesmo na poesia e vir fumar fora da porta!

Caso contrário, terias que fazer uma ode a uma multa!
;o)

Abraço

Anónimo disse...

Quando estamos frios por dentro, não conseguimos sentir calor, e tudo parece noite fria.

Bjs.

pegueitrinquei disse...

Vim até ao fim à espera de ler António Lobo Antunes ou José Luis Peixoto no final do texto. Mas li tão só e apenas lampâda mervelha, e o que eu gostei!!

Nunca me tinha apercebido do quão inspiradoras umas escadas podiam ser.

Jo disse...

belissimo.

A noite fala, pelas tuas palavras.

beijos**

Sorrisos em Alta disse...

Entretanto, um óptimo e inspirador fds para ti!!

R disse...

Bom texto; mas bonito domínio. Bastante aperaltado.

nOgS disse...

Ai...


Se as escadas e os cigarros falassem aquilo que nem dos meus lábios sai...


Tlvez nascesse um jardim selvagem deles...


Beijoca

pegueitrinquei disse...

Hum, e tu quando voltas ao activo?Gosto dos teus comentários, mas ainda mais quando escreves! :)

Aestranha disse...

"Nunca tive o hábito de beber sozinho, apesar de nunca me ter habituado a beber apenas um copo. Nunca fui comedido na paixão, também nunca cheguei a desintoxicar-me por completo da loucura de sentir o coração explodir. Talvez aprenda a falar numa linguagem mais próxima dos outros, um pouco mais à mão do coração. Ficar mais perto das mãos que me querem, destes gostos únicos e transmissíveis, num beijo trocado com sabor a noite de Primavera."

Fiquei siderada! Simplesmente...

Beijo-te...

gui castro felga disse...

gostei muito deste texto.