...

...

quarta-feira, 10 de janeiro de 2007

Demência

Saberia ela o que estava a fazer? Começo por me perguntar, antes de tudo o resto. Eu próprio temia enfrentá-la naqueles momentos. Doce insanidade, mesmo que faseada, em doses ao longo do dia. Aquele esgar, no seu rosto de sonho. Sim, ela era tudo para mim, tinha-lhe medo.

Por vezes, conseguia entrar um pouco no seu espinhoso e impetuoso mundo imaginário. Estranho, sombrio, e opressivo. Contudo, sentia-me fascinado pela sua decadência insana. Que ser era aquele, ali deitado ao meu lado.

Toda ela era um delírio para os meus sentidos. Até na forma como tocava num simples interruptor da luz me apaixonava. Aquele seu gesto, o seu braço ondulante como ramagem verde de vida. O toque do seu indicador, e fazia-se luz.



Eu já não sabia como lidar com toda aquela situação. Era uma loucura atrás de outra, suportar a solidão em que se fechava a cada dia. Desesperava, sozinha em mim. Ele, resignado com tudo, prostrado, continuava impávido e sereno.

Os seus acessos cegos em escrita a meio da noite, na sua preferência por escrever deitado na cama. O único momento em que o sentia transfigurar-se por completo. Noite após noite, o incómodo resultante do ruído atroz da caneta no papel, arrepiava o meu fundo. Os seus pensamentos em voz alta, os seus murmúrios do fundo da gruta. Eu sentia uma certa loucura tomar-me, silenciada, no outro lado, sem ele.

Decidi alargar a minha visão, a forma de abraçar o mundo, de abordar a vida. Sentia uma inveja maior, enciumada de todas as personagens que emergiam da sua mente. Brotavam a cada momento que o desejava só para mim. A terrível sensação de sentir ciúme dele mesmo. Também queria ser uma, a única dele. Fora do seu controlo, tornei-me na temível, inesperada e indomável menina de doce olhar.



Envergonhava-me no meio das pessoas, quando me atacava de forma deliberada no meio da rua. Tanta vez que me perguntei a razão de súbita mudança. Pior mesmo era quando dizia encarnar a sua própria aberração. Surgia-me do escuro, de rosto vermelho, arrastando consigo uma carga de ruindade, tão imensa que me sentia um grão de areia numa ampulheta.

Ameaçava, torturava-me no seu riso de troça e posição autoritária. Eu, incapaz de lhe fazer qualquer tipo de mal, tentava em desespero surdo mas incapaz, encontrar uma resposta. Procurei por todas as minhas máscaras. Perdi-me.



Cheguei a pintar rosto e corpo. Era o meu grito de guerra em desespero. Ele, nem um grito, nem uma posição ofensiva, nem defensiva. Na sua perspectiva, talvez tivesse enlouquecido. A sua normalidade levava-me a ser pior.

Tudo o que pedia, era uma reacção da sua parte, à altura de todo aquele triste panorama. Queria o meu homem de volta, aquele que me tomara noutras alturas. Eu era sua, fazia-me tanta falta senti-lo, com força, bem fundo.

Apesar do inferno em que lhe tornei a vida, o mesmo inferno era para mim magoá-lo. Era incapaz de o deixar muito mal tratado. Desarmava-me toda a vez que me apreciava, na mais pequena coisa de mim. Excitava-me saber que me olhava, na sua serenidade fixante. Ficava nua aos seus olhos, mas não me procurava mais além.




Sim, ela era linda! Mesmo na sua dose desregulada, eu gostava de todo o seu papel. Por vezes, enquanto eu escrevia na cama, ela roía as unhas, de tal forma que me quebrava o raciocínio.

Deixei de ouvir música enquanto escrevia. Dizia-me que os meus tiques lhes causavam uma sensação estranha nas entranhas. Nunca cheguei a colocá-la à prova. Nunca cheguei a muita coisa, nem a compreender. Gostava demasiado dela para a contrariar, para me impor ou contradizer. Gostava dela, da forma que fosse. Na sua perspectiva, talvez eu fosse apenas um fraco, um falhado.


Magoava-me mais aquele seu encolher de ombros, que qualquer agressão física que me tivesse infligido. Eu queria! Não respondia a qualquer estímulo. A dor que me trespassava em agonia, quando me dizia no seu tom amorfo;

- Vá lá querida… acalma-te um pouquinho… vá lá…

Tamanha vontade de o fazer sangrar, de lhe abrir aquela cabeça ao meio. Apenas o queria de volta. Sangrava também eu, de ódio em fel.

Sentia-o perder-se no meio das suas folhas. Rascunhos por todo o lado, de todo os seus mais recônditos lugares, arrancados de si. Toda a sua vitalidade esvaziada no papel. Cada dia, mais sozinha, restava-me a condição de louca.




Magoava-me tanto, quando tentava imitar-me a escrever. Tingia os lençóis da cama com uma caneta de tinta vermelha. Ria-se, perdida de maldade. Afirmava que aquilo era o seu sangue derramado, de cada vez que eu acrescentava uma palavra mais à folha.

Senti-me definhar com o tempo, na já incerta vontade de explorar toda a minha veia. Não conseguia escrever como antes, nem uma única madrugada viciante. Perdi o fulgor, adormecia cedo e só já acordava de manhã.

Ela continuava linda, desde o primeiro dia em que a vi. Continuava na sua senda pelo seu mundo demente. Sentia-a bem longe de qualquer lugar. Eu e ela, ausentes.



Deparei-me diante de um homem apagado, daquilo que restava dele. Implodiu, esgotou aquela chama de paixão. Fechado em si, hermético e longe de mim, asfixiou.

Aquele homem que me cativara, pedia eu em clemência, que me respondesse. Todas as minhas crescentes provocações, em nada resultaram. Chorei todo o meu coração. Seria por falha minha, mas não sei onde. Porque desapareceu o homem que queria ao meu lado?


Hoje, sozinha, pinto o rosto de vermelho todas as noites. Aterrorizo-me, porque falhei. Homenageio todo o meu erro, pela minha incapacidade de o ter mantido vivo. Não consegui ser o seu alimento. Tudo o que queria era uma diferente perspectiva. Queria apenas que me tomasse. Não consegui.



Escassas são as notícias que tenho dela. Sei que voltou à normalidade, pelo menos dizem-me que o aparenta.

Vivo na minha própria sombra, sem qualquer motivo para acender a luz a meio da noite. Sou pedra sem uso, ainda sem ter batido no fundo. Mergulho lentamente na abissal solidão, na ausência da menina do rosto de sonho.

Numa certa perspectiva, apenas lhe toldei o espírito, levando-a à loucura. Degradei a sua beleza nos papéis que escrevia. Deixei de existir até nas folhas que me ocupavam o rosto das madrugadas perdidas.

Tenho saudades daquele seu ar de menina feliz. Denunciante de alma viva em espírito de prosa, era linda no seu sorriso, naquele toque especial que tanto me inspirava. Gostava de ter sabido comunicar-lhe quanto gostava dela. O dom da palavra para nada serviu. Apenas a queria escrevê-la em toda a frase. Não consegui.

10 comentários:

Anónimo disse...

Não sei que te diga mas está lindo.
Beijinhos
Sandra C.

Anónimo disse...

Na contrariedade dos espíritos e dos sentimentos, a marca das paixões não permanece superficial, antes vai penetrando até à sede da razão, infectando-a e corrompendo-a...

Joker disse...

Uma luz que se apaga por falta de tinta no vazio das palavras.
O que ficou?
A pontuação que fez a diferença.
As virgulas que arrastaram o desenvolvimento da frase.
O ponto de interrogação que mudou o rumo da história.
E o ponto final perdido em parte incerta...talvez no titulo!

Envolvente, triste e intenso...

Saudações amervelhágicas!

Lady disse...

A demência e/ou loucura tem sempre duas faces... a sua beleza única que nos atrai e no qual cerra nela um misterio por desvendar, como por vezes incompreensivel... e a maldade, que nos faz temer e nos leva a tal passividade ou indiferença... Gostei, beijinhos e inté

Anónimo disse...

...um pouco a história das nossas vidas.falta de sintonia por falta de maturidade.o arrependimento por não se ter sabido ser diferente.
caminhos,sempre caminhos.estes,que nos fazem ir crescendo por tanto nos marcarem.




beijo ___________M.______________

Aestranha disse...

Nunca se consegue dizer... O dom da comunicação é sempre demasiado limitado... Talvez por isso estejamos sempre irremediavelmente sós com as nossas palavras imperfeitas...

Uma história de amor perfeitamente exemplar...

Isabel disse...

Maravilhoso____________________________________________________________ toques de genialidade mesmo espalhados pelo texto.

Amei a dor, a loucura, o sofrimento , a docura , a violência, o som imaginário (na minha imaginação) da caneta a rasgar o papel, dos dedos martrizando o teclado.

Tens o tipo de escrita que me envolve e com que mais me identifico.

Entro lá nessas palavras.
Elas entram em mim.

Docemente violento o teu escrever.

Adorei_________mesmo!

Voltarei.

Isabel

Anónimo disse...

também conheço uma menina assim...

muito bem retratado =)

um beijinho a ti e aos sobrinhos :p

A.*

Anónimo disse...

Se ambos levaram o outro à loucura, na loucura deviam ter permanecido!
Amor, ódio, paixão, atracção, ódio, amor, atracção, paixão. Eles tinham tudo à mistura.
Estava no seu destino não ficarem juntos?

Anónimo disse...

OH! Adorei... revejo-me e acho que já tinha dito isto num outro texto teu, aqui e ali recuo no tempo... Deja vu!
E muito bom por sinal!