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terça-feira, 28 de setembro de 2010

|amorsassino|

Ela não entrava nas suas contas, nas manhas e projectos de malvadez. Seria um empecilho, um tiro no escuro, algo que se esconde dos outros. Mantida em segredo, mesmo sem haver algo a revelar, o segredo como um preciosismo de um coração de pano, controlado por um conjunto de cordas amargas.


Absorve o momento, não esquecendo de gemer, da fome a saudade, do cheiro a menina guardada à pressa no baú. Não há diluente que dissolva as nódoas, nem tempo que leve as mágoas. Somente no enjeito de quem ainda acredita na esperança, sabe ela fazer-lhe a espera à porta, numa tão mais rendida pausa de entrega.


O amor acontece, por vezes colérico, abrupto e de chofre. No gancho que lhe prende o cabelo, a sua pele desnuda de luz, sem brilho. O seu rosto esquecido na voz grave que lhe estala aos ouvidos, ele tinha-a em “Amor de tanto te querer, eu mato-te!”. No fim do dia, quando já nem o corpo carrega a alma, reconforta-a num toque passageiro, sem aduaneiros gestos de quem gosta e deseja passar a fronteira a monte.


Sem a mesura de um sorriso, flor agreste de cheiro a esteva, compele-a no beijo, na voz, nos gestos forçados, na ausência de outros. É uma morte anunciada, capitulando o seu mais querer ao infortúnio de um homem náufrago de si mesmo. Escarchado, rosto cinzelado na rudeza de só saber de si. O amor acontece, por vezes no hálito de aguardente, entre dentes cerrados e olhos de sangue.


Ela não passava de um engano, nas teias de um armário mal resolvido, de uma desarrumação esquecida ao canto da vida já tardia. Seria uma sereia raptada dos mares, acompanhada apenas nas vagas do pêndulo do relógio de parede. Sem sal, com o pó de quem dança por dentro, no ainda palpitar que lembra uma jovem menina de cabelos ruivos.


Despedaça-se o coração, queimado na negritude das suas mãos, o toque feito lancinante, porque o amor acontece assim. Não há distância que quebre a vontade, nem memória que a traga de novo a si. A vida esquece-se dele, a lembrança colada ao olhar no vazio, entre os primeiros tons de cinzento outonal, até ao infinito de a querer refém na memória. Apenas porque o amor acontece.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

|199|




Enterramos os mortos e levamos o resto da vida a aturar os vivos.

terça-feira, 14 de setembro de 2010

traço esguio

Nunca se pensa naquela sombra, no exacto ponto onde desejaria ver-se luz, o ponto de fuga. Um desembaraço, qualquer resquício de pele seca, enxuta de pesadelos. Diz-me, voz que amarga, traço de lembrança, trago maldito do meu sangue, diz-me algo em poucas linhas, em curtas palavras, de nesgas e frestas de esperança.

Este, após anos de solidão, preso aos pés de quem se fez maior que o sonho. Deste ponto, negra qualidade tornada plena, adocicando-se o pesadelo de esperar na perfeição o limite entre o claro e o escuro. Prontificam-se, ao império a que tanto se quer ver atrás das costas, os sonhos absurdos de se desejar noutra pele, em voos proíbido a quem é Noite.

Absolvo-me de pecados e olho-te. Neste instante de traço esguio, momento desenvolto entre a calma de quem espera e a incerteza de quem desespera. Calma. Beija-me o mais frio da boca. Calma. Deixa-me dissimular o sorriso que me prende ao mundo. Calma. Jaz entre a agudeza das palavras, gélida palidez dos dias deixados ao sabor do ocaso. Até ao fim, sem princípio algum para perdurar nas nossas memórias.

Agarra-me o cabelo e chora-me por este peito, até me crivares de um gosto sentido, o terno cravar de unhas na carne. Sempre de pensei clarividente, pois em mim pouco habita da luz que nos viu nascer. Calma. Tez de segura vontade, nas manhas de este ser que apenas vagueia por estas veias pejadas de madrugadas.

Sabe o silêncio falar-me. Sabes tu calar-me entre dentes, causando-me a maior das revoltas e deixando-me sem sentido. Tranfigurando a alma ao espelho que tens entre mãos. Ousa, faz-me fugir. E assim, espartilhar a projecção dos meus rostos, esquadrinhar apenas o que penso saber conhecer, a mim.

Eu crio. Tu matas. Eu digo. Tu feres. Eu morro. Tu aconteces. Eu renasço. Tu tocas. Eu mostro. Tu... dás-me sentido. Perdendo-se mais um pouco de nós, na noção do gastos que estamos. Tu crias. Eu firo. Tu dizes. Eu mato. Tu renasces. Eu aconteço. Perde-se um pouco mais do antes, esperando ouvir-te em melodia, num assobio, remetendo-me para este presente, aqui.

Desengane-se a vontade, despejem-se os bolsos de pesos dos outros. Mergulhem os lábios nos beijos deixados para outra altura. Quer-se o sonho, obtém-se a vontade. Ilusório, escrever-te entre sombras, sempre a uma só mão, não faz de ti metade que me falta. És este grito. Hei-de te encerrar entre os meus ossos. Sempre, para nunca.



segunda-feira, 6 de setembro de 2010

|cessatio|

Tudo se desfaz
e quem me fez, na sua pele
sentiu-se tentada a não se dizer segura
esquecido era, senão este palmo de peito
um aperto em constante negação

Tudo se desfaz
e quem te deu, minha rosa
um rosto que desconhece a prosa
nem receosa da chuva, me dirias assim
tão bom é lavar-me na certeza do nada

Tudo se desfaz
augúrios, prementes dias quentes
um diluído mar de sorrisos
escorridos cabelos pelos ombros
marés e mais que mergulhos, as despedidas

Tudo se desfaz
seguindo um caminho de terra
procurando o rosto manter-se seco
deixando o mar para trás das costas
sem o desejo imperar no regresso

Tudo se desfaz
nos nós, nas correntes e linhas de pensamento
na ânsia de salgar os sentidos e calar o mundo
na boca que engole, nos olhos que ardem
esta força de me saber entre as vagas

Tudo se desfaz
aos incapacitados caprichos de quem não vive
feitos em segredos, castelos de areia
ao areal na boca, cospe-se em nojo relutante
na pele raiada de branco sal, até aos lábios o negam

Tudo se desfaz
quando nada mais sobra que a espuma das ondas
e o medo de tomar as rédeas é um soluço constante
dir-me-ia morto, condenado ao fracasso
sem este amor, na loucura de me perder nas horas

Tudo se desfaz
contra o areal calcado a cada ida, a cada volta
sem que o mar me deixe de embalar
e eu, no jeito de homem que abraça o destino
nada se dissipa no esquecimento
sem que nada me faça desfeito

Tudo se desfaz
dado ao esquecido tempo maior
por o querer mais lato que a alma
mais fundo na retina, no mais escuro da noite
em tudo o que nasce e morre em mim