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domingo, 24 de fevereiro de 2008

|t|enebras

Em boa carta te envio este pesar sem olhar para trás. Descortinado em tantos nenhures da alma, presa apenas a um aquém da saudade que se estende a uma chaga de lágrimas. Meu filho, repito-te, meu filho de legítimas virtudes, fonte de tão saciadas bocas para quem não eras apenas um inocente e incólume ser. Os incrédulos sorrisos batiam asas ainda antes do anoitecer, ao crepúsculo das palavras que segredavas entre essas paredes, tornavas-te cada vez mais aço, mais forja e lúgubre poço sem fundo.

Sou tua mãe em sentimento feroz do silêncio que carrego, pesando-me nos ombros a sobranceira vontade de quereres partir. Pari-te em tantas dores, guardei-te em tantas esmolas e frios. Fiz-te homem de sabores imensos, tão intensos e sem saberes quem eras na verdade. Pequei pelo abandono à arte de te deixar no fel, às lonjuras que vivias nas minhas complacentes carícias. Aprendeste a lidar, não querendo mas consumias o mal. Em tão inversa palavra me dizias, e em tão viciante mal me olhavas. Era eu a mãe de todos os horrores, o teu grito pelas grilhetas na maior das vontades, a tua.

Das tuas primas nefastas com que a tua alma se deitava, deixavas o corpo num canto ao acaso, sem memórias maiores de alguma noite mais digna que um trémulo brilho de candeias. Suspiravas. Aspiravas a mais, como um guerreiro que não teme a derrota, nem a morte ser vista assim. Dizias-te perene, sem vacilar, e no entanto, a tua arena era o meu ventre. Tão meu menino, tão basáltico este orgulho de te ver na espiral do meu abraço.

Sinto-te cheio de um sangue que já nem reconheço a cor, nem cheiro o pesar que te ensinei a ter. Vejo-te num espectro que me cega em pungente saudade por já não estares, por já não seres quem eras. Fazes de mim uma sobra, um resto de trapo sujo, condenada a ressequir-me à luz dos teus olhos. Não me orgulho por completo, preferia o teu coração negro, aliado à tormenta de não te encontrares.

Nem a sombra das tuas memórias te trazem de volta. As tuas legítimas esperanças afastam qualquer ensaio de um luto que não te caiba. A servidão a que se estendia o teu sentir, tão inebriante que até eu me tornava tua amante. Oh, como me eras tão mal... a melhor das promessas para disseminar a semente de um império. Tão mal que me eras, tão bem que te curas.

Hoje sou eu que me provo, e tu já nada me és.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

|p|o|l|a|r|

Desce das estrelas e diz-me como devo respirar-te em alegria constante. Esse teu sabor enrolado em papel rebuçado que trazes em pergaminho de ouro, tesouro de fim de Inverno. Floresce, cresce dentro e germina para fora.

Vem cá abaixo e mostra-me como se traçam as linhas mais que imaginárias, com este giz de desejo que tenho nos dedos, almejando reescrever-me todo por ti.

Desce mais um pouco, colocando os teus joelhos nas minhas costas. Apara-me, sustém-me a respiração que exalta a noite, porque sentir-te é expelir todo o momento num trejeito de tanto olhar para cima.

Trazes fuligem na pele, cisco da paixão combustiva. Vem, desce à terra que sou, enriquece os meus silêncios com as tuas frias águas de prata. Dispersa por mim o encanto da noite, sendo a alma um peso menor ao alcance da eternidade.

Retorna à linha que nos une ao horizonte, pois a distância é apenas a maior extensão da conquista. Movimenta-te em sentido descendente, acrescendo o semblante, o teu rosto de constelação.

Aproxima-te, vem só mais um pouco para dentro de mim. Preenche-me a volúpia da carne, a fruta madura, do sumo em que te torno quando te aperto. Aguardo-me sem reservas nem ansiosas pressas, muito menos famintos desejos me enfraquecem os músculos.

Amor, meu amor, ar quente dentro de um sonho, resguardo de forro precioso. Fina casta de sabor a força, menina bonita em tão alto céu. Desce até me olhares de frente, no exacto ponto em que te desejo, em mim. Escorre pelas letras que te ofereço, descai pelo teu ombro o verbo tornado acção na palavra digna de respirar. Doce aroma silvestre, disposto no arisco e arredio dorso desnudado de preconceitos.

Cai sobre mim, infindável crepúsculo de manto arabesco na tua trama de menina fábula. Torna-se a cadência das palavras em vagas inusitadas, escondidas na névoa que se instala aos poucos, visitando a humidade todos os poros que te respiram. É teu o timbrado solfejo na melodia tangente dos lábios, deleitosas ondulações circundantes, circulantes, sitiantes.

Designado o gesto nómada da vontade de nunca parar numa só estrela, talvez me disperse até ao mar, dissipando o etéreo gosto por ti em qualquer mar bem-aventurado. Escrever-te é dedicar-me à luz, à melodia desvendada na tua língua, nestas nossas peles coladas, como as sombras vibrantes de vida.

As mãos criam-se em corações que querem, transportam-se os sentidos até à flor do teu pólen. Impregna-me mais com esse unguento de safras murmuradas a sós. Regressa à origem, descendo por todo quem sou, onde o céu começa e o meu rosto termina, por onde a maré avança e o mundo finda. Aqui, dentro de mim.

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

|n|ós |d|e |a|reia

Com a graça de quem desenha na areia, rabiscava uns traços semelhantes à sua face. Aquele gesto sem ser esquecido, encadeado pela lógica do costume passeio na praia deserta, sem fim à vista da sua semelhança com os raios de sol.

Coubera ela em todo um rasgado sorriso, soubera eu fazê-la mais extensa que o mar. Sem optar pelo silêncio, a ausência de todas as palavras não lhe calavam a beleza. Sim, uma sereia abandonada na livre vontade do pensamento. Deixava-se ir pela corrente salgada das emoções, sem nunca equacionar a probabilidade da chuva encharcar todo o areal. Saber-lhe-ia sempre bem, sem que a incerteza lhe corroesse o gosto.

Há solturas, fitas vermelhas esvoaçando entre os seus cabelos. Os gritos de felicidade embalados nas ondas, escrevendo na areia as tantas palavras que nem o coração sabe dizer. Sente. Sente como quem vive.

Meu beijo doce de mar salgado, calor que sustenta o coração alado. É nosso... todo este tempo, mesmo que a tempestade assuste os fracos. Flamejante, intenso e inaudito, o encrespar dos corpos na turbulência das águas em recônditos lugares, tão mais fundos que a própria vontade.

As mãos em concílio, em singular nó, constroem o árduo caminho do desejo. Saboreiam a plenitude do tempo cerrado, pintado a azeviche carregado, na veemente força da colisão entre o mar e a terra. Este espesso sentido que se me injecta nas veias, dilatam-se em devaneios, em conluios tempestuosos de prazer. Será esta sôfrega paixão aliada do dominante temporal. Viciam-se as ondas no embate contra os rochedos, espumando este querer por todos os seus recantos.

Martiriza-se o corpo em chicotadas de pétalas carmim, aos meus olhos que enegrecem com a noite, esperando a diáfana mão que me enleva a outros céus. O sol da meia noite desperta os amantes, no pesponto dado nas mãos que os cosem. São puras esperas, maiores suspiros do bafo quente das bocas que se amam, nas salivas misturadas, nos fluidos que escorrem como um périplo pelo seu corpo.

Nada se esgota, mesmo sendo a finidade do corpo que envelhece, por vezes, como um castigo que se tem. Merecendo cada ruga que me surja, chamá-la-ei de escrita empírica, como cada palavra riscada no areal. Cada singular marca que o mar leva com a sua língua, darei o mesmo nome de quando toda ela me lambe a pele.

Serei mais um nada, apenas este algo tão forte, tão mesmo que o coração sofre por se sentir tão analfabeto. Sinto, sei como a sinto. Toda a manhã desperta em mim, resguardado entre o sol e as nuvens dominantes do horizonte. E a noite aliada à lua, não me querem a dormir num descanso de como alguém que se esqueceu de viver.

Quedo-me entre o respirar de mansinho e o sorriso. Emana o corpo um odor a saudade, na simples espera de um pequeno minuto. A vontade anseia pela entrega, a pele enregela com vontade de fundir-se em lava. Os meus olhos sorriem no choro por sabê-la a terra e mar. A minha única e verdadeira dor é fustigar todo quem sou no todo que ela é. Só assim, em maior dor me quero.