...

...

terça-feira, 30 de março de 2010

marginais do acaso

Guarda-me um pouco, nessa noite que trazes na pele. Guarda-me, guarda-me, guarda-me em tantas e repetidas vezes, e que me cales para sempre. Como os teus beijos me bastavam para acalmar esta cegueira de sentir o inconformismo de não te ter por inteiro.


Nunca te liguei de volta, nem que voltas teria de dar para o fazer. E guarda-me, guarda-me, guarda-me numa repetição de voltas, sem que retome a volta de onde vim. Que fosses de novo aqui, aqui, e mais aqui... onde me deixaste descompensada.


Caminhamos sozinhos, porque somos corações voláteis um ao outro, ao tempo inventado entre nós. Talvez nem tempo tenha passado na verdade. Porque talvez nem verdade tenha existido. Foste magia, cada sinapse, cada bater de asas quando me transformavas. Cada nota perdida, velada em cada prosa transformada num gesto. Percorrias-me assim, perdido em desvelo. Oceano que me cerca, e cerca-me, cerca-me com o teu abraço de uma vez por todas.


Sempre nos fez bem pensar assim, que a solidão só nos faria bem. Estarmos a sós, mas só um resta de nós. A cada canto da casa. Em cada recanto meu. A cada singularidade de um dia teres sorrido para mim desde esses teus olhos ao teu coração.


Somos especiais, dizias-me assim, meu amor, todas as frases terminavam da mesma forma. Meu amor, meu amor, meu amor... somos apenas marginais do acaso. Perdento-te ao início de uma rua, reencontrando pedaços de ti noutra, e noutra, e numa outra que nem sabia existir na tua vida.


No fim, e por fim, sem finitude ou compaixão pelo mundo, o beijo da sentença. As tuas mãos macias, embalavam-me noutro beijo roubado. E beija-me, beija-me, beija-me todas as mais vezes como sendo o primeiro e único.


Devemo-nos ao fogo, no entanto queimámo-nos em separado. Não sei falar porque não me sabes ouvir. Não conheço outro alguém, e tu, tu, tu e só tu finges desconhecer quem sou.


Não está bem. Nada fica bem. Nada estará bem, mas tudo bem, enquanto houver tempo para bater cada minuto que nos separa, nesta única folha de papel.


Hoje escrevi-te. Carreguei-te nas estrelas e desci pela tinta, no que me tinge em lágrimas de te olhar lá tão alto. Brilhante, sempre o foste. Tenho tantas saudades de quem fomos, mesmo existindo mais para além deste pesar. Pensar que me olhas do teu lugar, ali para cima, onde te pendurei.


Hoje, como na última noite, espero por ti à porta de casa. Aguardando, esperando que venhas, que te venhas e me amarrotes para o lado. Já não precisas de dizer que me amas, quando me chamas assim nessa voz quente. Nem um pouco ficas, quando nada mais tens para me contar ou medir em mim.


Apenas que não chova, que não chova e não chore o céu por mim. Lê-me apenas desta vez, na última frase que te desejaria dizer para sempre. Repetir-me por ti, vezes, vezes, e vezes sem conta.

quarta-feira, 24 de março de 2010

paz na terra


Imagem: Marco Neves (c)



Se ao menos o meu coração coubesse nas tuas mãos
Nos teus dedos feitos na distância, de saudade
Do tão imenso que nos separa, do céu derramado sobre a terra
Por entre a paz, a inquietude que me traz o sossego


As noites precipitadas nos dias inacabados
Deixados para trás, aqueles antes de ontem
Se ao menos soubesse a terra oferecer-me o teu cheiro
Um resplendor, uma ténue presença tua no vento


Existes no tempo somente, nos espaços agrestes, em mim
Em olhos mais que guardados, num rosto fechado no solfejo
Destas memórias que de mim fazem um homem
De rancores esquecido, de lutos despido


Chamar-te-ia morte se não soubesse de cor o teu nome
Ou na frívola vontade de abrir os braços e clamar-te assim
Roubando quem sou, à boa ventura de ter nascido para o mundo
Se ao menos soubesses tu... que ao menos existes.




sábado, 20 de março de 2010

cursivos

Estranha forma como começo por descrever este momento, sendo quase inócuo, talvez impossível de desatinar comigo mesmo, só mesmo porque não me importo. Frase mágica que me surge a completar o raciocínio, "porque não me importo". É mais que desistir, menos que desacreditar. Sem ser uma falência das crenças e dos sentidos, ou aliar-me à fácil trama do coração desfigurado, apenas já não me importa.


Uns pés descalços e já um ombro com a pele em alvoroço. Frio. E um estado virginal, quase leve, quase brando, que ao olhar para ti nada me dói. Porque não me importo, lembras-te? Não te olho, mas deambulo de pensamento corrido. Não há corações desfigurados. Porque não há corações desfigurados, só tempestuosos. De tempestade? Não, de Amor. E aos clichés, um brinde, quase murmuro. Mas que se foda a poesia. Eu só queria que estivesses sozinho, não contigo mesmo, mas com a crença mentirosa de que não mais acreditas nas nossas memórias. E não te olho.


Descolou-se-me o manto provençal, uns tantos dizeres tão sentidos como o poço das paixões secretas. Da mesma forma como se descola a retina a um atirador profissional, assim sinto esta bebida forte atravessar-me por dentro. Foda-se, já não quero saber. De tanta engrenagem me saturei, e nenhuma outra acção me ocorre a não ser colocar as mãos atrás da cabeça e descartar toda e qualquer vontade de me sentir.


Arrasta-se uma cadeira, coloca-se mais um copo à mesa e traga-se vodka em três goles. Quase que te desprezo, quando à pouca luz o teu rosto sem som me parece a coisa mais bonita de sempre. Lembro-me agora porque me conquistaste. Em expressão insana, silencio-me num “cabrão”, enquanto ato o cabelo que me cai pelas costas. Levantas-te, agarras no casaco e bates com a porta. Finalmente uma morte ao silêncio. Olho, autista, para a parede. Caio da cadeira, bato com o cotovelo, o meu cabelo desprende-se. Choro-te, a ti e ao chão. Cabrão. Amo-te de doença, de morte.


A mim que já nem me importa se volte a temer a morte, ou pior, morrer de paixão, se nem já lhe vejo o rosto. Que a mesma me consuma as veias, secando-me de desejo, de ânsia aflita e desesperante. Agora... agora sento-me numa esplanada, quieto apenas, no silêncio que só a madrugada traz consigo. Toda esta quietude, quase bizarra de imaginar outrora, seria constrastante com a maquinaria a vapor que sentia possuir-me o pensamento. Resume-se a um pequeno compêndio emocional, desenvencilhar-me de mais uns acrescentos que me deram à alma.


Permaneço em chão que não me é alheio, mas que me fere os poros. Porque das tuas palavras escritas em noites antigas nas minhas coxas, só te consigo dizer que de todos os homens que já tive, só tu me sabes chamar. Choro piamente, até que a desgraça pareça ridícula e adormeça.


Necessito de alguém que me fale das diferenças entre cosméticos baratos e caros. Necessito de ouvir dizeres e boatos, alcoviteiras de anca larga, de sentir um perfume liso, plano, de odor a açucareiro ou essência de lavanda sintética. Quais bálsamos, concentrados ou óleos, sândalos e madeiras exóticas. Enjoei-me de tantas paixonérrimas canduras, de triunfos cantados à clara voz que nos abre o peito, aventuras e vãs glórias de amar... enfim. Acabamos todos numa cigarrilha mal fumada à varanda, antes de nos esticarmos na cama engelhada, no compasso da ventoínha para enganar o calor de Agosto.


Sonho com um Verão que nunca chegou a ser. Levavas-me até ao México que não vem no mapa. Apaixonavas-te por uma cigana de olhos verdes, mas foi a mim, de olhos castanhos, que pedias em casamento. Neguei onze vezes, uma das quais ao almoço, ao lado de um casal perfeito, lindos. Durante a tarde fazíamos amor como quem fazia carrosséis e algodão doce, de cortinas puxadas e perfumes alegóricos. Éramos lindos, na cama. Implicava contigo: um bom cheiro vem de flores bonitas, não de falsos incensos. Era um Hotel pintado a ocre decadente, e eu chamei-te de meu amor. Não sorriste. Não pestanejaste. Nada. Não foste tu. Afinal, eram só mesmo falsos incensos.


Nem importa o mês, apenas um exemplo, porque já nem me importa muito que o Inverno continue. É. Até nem me importo muito com o que possa acontecer a seguir. Continuo a adormer e a acordar no mesmo local da mente. Já nem bebo...


Se ao menos quisesses saberes-me ouvir. Porque me dói. E dói-me por saber que me sabes ler, mas não queres. Não és tu. Nem por um segundo desvias o olhar do infinito que encontras numa parede despida. Nua me deixas. Nua. Sem ti nessa mesma tua presença. Dói-me tanto quando te dás assim, a mim.


Aflige-me aquela sensação que me domina por certos momentos. A extrema necessidade de implodir, dando por mim a procurar nos outros mais e maiores males, que me alimentem a fome de destroços. E como adoro... e como adoro um bom coração estropiado. Pior será a carência emergente, e que na verdade, já não querer saber é apenas o início de uma fase. Sinto pavor ao que precede por não ter a cabeça repleta com as coisas dos outros, de outro alguém. Provoco, insisto em espremer o coração até que o mate. É um pavor absurdo do Sol. De tanto saber que te amo, maior é esta tusa por te matar.


Procuro-te irracionalmente em aflição desmedida pela casa. Não voltaste. Sem surpresa. Sem saber se é bom ou mau. Arrasto-me com o roupão a meio corpo, os seios que vislumbram na penumbra o teu rosto inventado. Uma perna nua à tua espera, ao canto da casa.


Ocupo-me de merdas que nem gosto, não quero saber! Adoro o cheiro do vinil quando novo. Preto. Vermelho. Preto e vermelho. Forrar as paredes assim, quentes e frias, frias e quentes. Apetece-me.


De boca com o sabor a esmalte, descalça, enamoro o papel de parede que comprámos juntos. Tinha o coração estropiado, e tu, em modo Velvet Underground na ponta da língua, enfiaste-me no carro e deslumbraste-me com promessas de paredes alegres. Cantavas mal, mas reparaste-me o peito encardido. “Destroços... que destroços os teus...” dizias tu, no teu ar complacente e de cuidado, quando me querias noite dentro.


Não é que me importe, ou então minto descaradamente, mas tenho fome. Regressar nas mesmas palavras com que saí. Nenhumas. Puxar-te para um canto qualquer, ignorando que os teus pulsos gritem a tenaz dor de te agarrar. Rasgar-te. Saber cantar na rouquidão que a catarse me dá. É um ódio incondicional, amor. É um ódio desejar-me rebolar pelos destroços para saber adormecer entre os teus seios. Despojos de gostar assim.


És doente, mas sou crente na tua doença por mim.


És dor, Amor. És morfina para mim.

segunda-feira, 8 de março de 2010

Apenas Nós

Despede-te de mim, como se um amanhã ali estivesse à espera de te ver partir. Sem delongas, demasias e excedentes em forma de comentários. Esqueçamos as palavras, as roupas, as horas e os limites do dia e da noite. Despede-te de mim, sem me perguntares quem sou, que será de mim no minuto a seguir. Despede-te, despede quem te crivou a alma de interregnos, protuberantes males que ao rosto são lágrimas. Relembra, envolve, absorve o aceno. Contorce, desfalece o ouro na sombra sobre os teus ombros angelicais.

Guarda lá fora quem te arrecada cá dentro. Exprime o que te comprime, expressa o que reprime. Despede quem te deprime, para a seguir alvitrar quem já te esqueceu. É uma vida comprida, assim como as nossas silhuetas ao fim de um dia, já enxuto de qualquer memória.

É um cão velho que guarda o destino. Sobranceiro, de rosto empedernido pelo passar do tempo. Deitado no mesmo alpendre ao mesmo tempo que o mundo nos fez. É um decorrer, um gosto que se esquece em amargos tragos de vida. Não são dias nem noites, nem o cansaço se lhe impõe condicionantes ao espírito. O coração... ai o coração do cão. Esse que lhe dá lastro, aquele brilhozinho ainda nos olhos.
O que não te sei dizer por palavras comuns, descomplexadas ou aturdidas de alegorias, desprovidas de mim. Comparação alguma a outros vocabulários que desconheço, senão este... este que nem sei dominar... o de te escrever no preciso momento em que te sinto. Lamento.

Lamento que te despeças de mim, não por sentir desfaçatez no acto, ou tacanha mortalidade a que se dá o comum mortal. Despede-te de uma só vez, porque imaginar escrever-te na pele, nos olhos que me ofereceste para as palavras que nem existem. No tudo de saber-te folhear, e sol após sol, reescrever no teu corpo, com o giz que se emaranha até ao coração... reticências de expressivos e contínuos sorrisos. E sei lá eu que mais, apenas tendo a certeza que nada acabava no ponto final.

Apenas nós.