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quarta-feira, 5 de março de 2008

|O|ssos

Neste enclave tão estreito, apertado pelas próprias mãos, seguro-me entre os ossos. Esses compostos porosos, ansiosos de maiores plenitudes. Dispostos por ordem, pela regra que alguém se lembrou de lhes dar nomes tão estranhos quanto nós. Ossos meus que não temem o ócio de Domingos. Nem tenho em memórias quantos são, quantos já foram, os ossos e as letárgicas tardes.

São ossos, homens e mulheres convexos ao natural, julgam-se inquebráveis mas a tamanha palidez segura-me na certeza da fragilidade. Suportam-me o mundo no mundo, para o mundo que está mais além deste, até à linha que me separa daqui e de lá. Simpáticos, silenciosos por entre a carne, a estrutural rigidez do projecto inalterado, que de tão forte nos tomam a consciência tola de pensar que não podemos perder a fraca figura vertebrada.

São-me espinha na verticalidade a que me dou, por vezes, sujeitando-me à dor que me enche a boca de palavras alheias e avessas. Ossos que enchem a pária de maleitas, tanto suportam homens como alimentam o infortúnio. A pátria que os pariu para depois os ver cair por qualquer coisa que os unia para além do músculo. Mais valorosos ossos sem nenhum mal que lhes padeça, secam hoje ao sol entre as extensas planícies da primavera.

São quentes à fria sombra do esquecimento, são frios no intolerante golpe da fractura. Até ao tutano, sem que me dê a volta pensada, da lasca que sobra de um corte transversal pela hipotética evolução. Se continuo aqui entre eles, e eles em mim permanecem, que mais ossos são que não estes, os que penso e faço em mim. Que mais ossos que não os outros, se tanto os namoro sem os querer. Se tenho ossos que nem meus são por direito, enfim, outros já terão suportado e aturado os seus queixumes. Lamento eu saber que não os tomo por minha conta, serão de novo vadios quando me retornarem à procedência do pó.

São ossos, duvidosos porque não os vejo. Dizem-me que os tenho, penso que os sinto, acredito que sejam. Constroem-me mil ofícios, mas o mal prematuro da lesta destreza confina-me ao saber só meia dúzia. Mais ossos são na ausência do meu breve coração colado ao teu, enjaulando-me a alma entre as costelas, sem que o espírito se aprisione a pensamentos menores que a liberdade.

Não se fazem à graça da tormenta seja qual for o seu nome, mal a culpa se afasta por entre as nebulosas ocupantes do céu. Não menos pessoa seria, sem estes ossos que me fazem nesta cadência de pensar, sobrepondo-me como pedra a pedra numa muralha. Mantém-se o anonimato do que me fortalece a culpa de desvendar que o obituário não é mais que uma relação de ossos descomprometidos e desvinculados do fardo da carcaça.

Alimenta-se a saudade com palavras cinzentas, pinceladas de grés na ossada que me morre pela boca. Os aplausos não se coadunam com a posição inerte colada à sombra da memória tornada imagem. Criam-se clareiras por entre o destino, decompõe-se o corpo num processo hostil, ossos que gritam pelo despego. Sustentam-me as falanges entre a concepção e o término das palavras. Esta afeição criada com o que julgo ser meu, este esqueleto que não me limita no papel, marca antes o desapego pelo condicional.

Ossos deixados na berma da torrente, nus e lisos, ao sabor do imaginário de cada um. São jazidas de supostos indivíduos com nome, perguntando-se antes de quem eram e não quem são. A identidade mantida entre a carne, esquecidos ao acaso, omitidos, guardados em estúpidas caixas que se esquecem com o tempo. São ossos, no dolo de apenas lhes chamar assim, apenas ossos, só ossos
.

18 comentários:

Jo disse...

f a b u l O S(s)O.

as usual.

beijo*

Anónimo disse...

Ossos...os teus,ainda que quebrados,sepultados,tornados pó...
permanecem as palavras...as tuas!
Ou não fosses tu estrela do mar :)*

Bé David disse...

Olhar um sentir único
que trespassa,
pelo mais fundo e visceral
de nós próprios.
Aquilo que nos forma,
disforma,
constroi-nos
e nos sutenta.

De uma tão maravilhosa forma.
De uma tão fabulosa
|des|construção.

A tua escrita!
.
.
.
.
Os teus ossos!... :)

Anónimo disse...

Tanto devo�o aos ossos se bem que teus, nossos tamb�m, os ossos s�o mais importantes do que se pensa...!! Porqu� ossos e n�o xicha!?
Venha ela ficamos � espera!!!!
ByB

Blueminerva disse...

Que crueza tão fascinante! O que é que fumas pra escrever estes delírios absolutamente inebriantes?
Aquele abraço

Unknown disse...

E as palavras que podem ser somente elas, como os ossos que simplesmente "só o são", mas que não, e tornam-se belas a elas sobretudo por aquilo que
nos dão.

E tu, usa-las...maravilhosamente!
Há que ser justa...:o)

Sorrisos em Alta disse...

Sem ossos não somos nada. Com ossos... és grande!

Sorrisos em Alta disse...

Ah, a Merche manda-te cumprimentos!
:o)

Abraço e
ÓPTIMO FIM-DE-SEMANA
(daqui a 6 anos, tenho que escrever o óptimo sem o "p"...)

Eme disse...

Muito te enganas, são ossos mas não quaisquer ossos nem de qualquer. Mesmo o pó que deles se forma é único e apenas de um. A natureza e o seu genoma codificado já se encarregaram de resolver lamentos como o teu. Vangloria-te dos teus ossos. São apenas teus, à excepção de pedaços enxertados, está neles gravado o filme da tua vida. E apenas as tuas falanges tocaram as teclas que deram os teus verbos. As falanges que te responderam eram minhas.

Único.

un dress disse...

enterrados os ossos.

até

à

ressurreição.





beijO

Anónimo disse...

Somos feitos apenas de ossos e são eles que ficam depois de nós irmos, no entanto durante a vida toda nunca percebemos o quão frágeis e insignificantes somos, afinal, no universo das coisas e no seguimento do mundo.

Bj.

Aestranha disse...

Al ler este teu texto, que acho que está lindo e fabuloso com já me tens mal habituado, lembrei-me daquela frase: Comeste-lhe a carne, rói-lhe agora os ossos... Sei que não é por ai que vais mas lembrei-me disto...

Muitos beijos poeta "prosador"

Ana Pena disse...

Bom texto, grande música:)

ContorNUS disse...

Excelente... como de costume

a sonoridade perfeita para acompanhar as palavras

eudesaltosaltos disse...

às x, qd t leio, prg-me: mas onde é q foi ele desencantar isto? hoje foi uma dessas vezes... :) bj

Sorrisos em Alta disse...

E eu a pensar que estava aqui hoje uma ode ao guronsan...
;o)

Abraço

Maria Brito disse...

este homem sempre tão inspirado... venham dai esses ossos!!!

12 disse...

No início pensei nos meus "ossos", que risquei aqui há tempos

(Estou partida/ onde não existem ossos nem carne/ Estou partida de mim, partida de nada/ Partida só/ Se eu reconhecesse a fragilidade das ligações/ talvez me cuidasse melhor/ Se eu me definisse/ talvez me soubesse melhor/ Protege-me daquilo que eu quero/ Protege-me)

Bem menos desenvolvidos que os teus: ossos de leite talvez :)

Depois ia lendo e só pensava em caracóis: sem ossos.

Parabéns pelo Blog.